São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"O TÚNEL"/"ANTES DO FIM"
Sabato vê a luz sair das sombras RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Só há um problema filosófico realmente sério: é o suicídio", sentencia o franco-argelino Albert Camus em "O Mito de Sísifo" (1942). Foi para escapar do suicídio, conforme relembra em "Antes do Fim" (99), seu livro de memórias, que o ficcionista argentino Ernesto Sabato, 89 anos, escreveu "O Túnel" (48), estreando no romance com uma obra que o próprio Camus recomendaria para publicação na França.
Os dois títulos, que chegam simultaneamente às livrarias brasileiras -"Antes do Fim" pela primeira vez e "O Túnel" em nova edição-, funcionam como uma irrecusável introdução ao universo daquele que representa, ao lado de monumentos como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e de Adolfo Bioy Casares, o que de mais grandioso pôde fazer a literatura argentina no século 20. Universo em que, vale ressaltar, o biográfico e o fictício se esbarram com frequência. Até porque, segundo o mexicano Octavio Paz, os poetas (os escritores, de um modo geral) não têm biografia: sua obra é sua biografia.
Esclareça-se logo que Sabato não matou "a única pessoa" capaz de "compreendê-lo", como acontece com o pintor Juan Pablo Castel, o atormentado protagonista de "O Túnel" (embora também pinte). A vítima, María Iribarne, começa a alcançar essa condição depois que Castel a vê observando um detalhe de uma pintura de sua autoria, para o qual os críticos, "essa praga que não consigo entender", na avaliação do artista-narrador, jamais haviam dado a menor importância.
"Se eu fosse um grande cirurgião, e um senhor que nunca pegou num bisturi, nem é médico, nem imobilizou a pata de um gato, viesse me explicar os erros de minha operação, o que se pensaria? O mesmo acontece com a pintura", argumenta ele, justificando sua repulsa pela tal praga.
Obcecado por María, Castel tem um caso com ela. Ocorre que María é casada com um cego (de verdade) e parece ser amante do primo do marido, desenhando-se aos olhos, também cegos (de ciúmes), do pintor, como uma prostituta. O desfecho não poderia ser outro. O leitor toma conhecimento dele na primeira e contundente linha do romance: "Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne".
Um dos prodígios deste livro elegante e cruelmente irônico, de estrutura próxima ao policial, escrito com algumas hesitações narrativas propositais -afinal, o narrador é um artista plástico e não um homem de letras-, está nisso. "O Túnel" é, digamos, a crônica de uma morte anunciada (como o romance com esse nome apresentado, muitos anos depois, diante do pelotão de julgamento dos leitores, pelo colombiano Gabriel García Márquez).
Não foi simples publicá-lo: todas as editoras o recusaram e só com a ajuda financeira de um amigo ele saiu na revista "Sur"; depois arrancaria elogios até do alemão Thomas Mann. Com o rigor de seu estilo, "sua secura e intensidade" -nas palavras de Camus, em bilhete ao argentino, reproduzido em "Antes do Fim"-, o autor mantém aceso o interesse por "O Túnel", por mais que se saiba o desfecho.
Se não há secura no livro de memórias de Sabato, a intensidade é desconcertante. Para além disso, o que aproxima ainda "Antes do Fim" de "O Túnel", enredando biografia e ficção, é a consciência da incomunicabilidade entre os homens. No fundo, esse foi o abismo para o qual Castel se lançou e que Sabato precisou enfrentar até as cercanias do suicídio.
Naqueles dias, ele vivia em Paris como funcionário da Unesco e experimentava a pressão sem trégua dos cientistas, inconformados com sua decisão de abandonar uma carreira brilhante de físico -já havia passado pelo Laboratório Curie, na própria capital francesa, graças a uma bolsa concedida por um Prêmio Nobel de Medicina, depois transferida para o sofisticadíssimo Massachusetts Institute of Technology (Boston, EUA)- em favor da literatura.
"Mergulhado numa profunda depressão, frente às águas do Sena, subjugou-me a tentação do suicídio. (...) Através da angústia, em uma máquina portátil, comecei a escrever de maneira febril a história de um pintor que tenta desesperadamente se comunicar", conta, na primeira parte do livro de memórias.
Antes, o escritor relatara suas origens albanesas por parte de mãe (ternuras), italianas pelo pai (turras), os primeiros contatos com a violência do mundo exterior, o engajamento precoce na política e a precoce desilusão com o comunismo, o casamento harmonioso e feliz com Matilde Kusminsky-Richter, a amizade com os surrealistas, o dia em que, por acaso, no campo, topou com um jovem médico que seria conhecido como Ernesto "Che" Guevara.
Em "Talvez Seja o Fim", segunda parte das memórias, o romancista de "Sobre Heróis e Tumbas" (58) expõe suas preocupações com o mundo. Aqui, o Brasil é citado mais de uma vez, com suas vergonhosas estatísticas sociais. É nesse momento também que o escritor ataca o neoliberalismo e conta seu trabalho à frente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que desmascarou a repressão na Argentina durante a ditadura militar e gerou o livro "Nunca Mais".
Na terceira parte, Sabato volta-se outra vez para as próprias dores, agora centradas na perda do filho Jorge Frederico e de Matilde.
É no epílogo que as memórias se identificam menos com "O Túnel" ou consigo mesmas. Nele, o escritor propõe uma comunhão entre homens que resgate a humanidade. Troca a derrota pela revanche, o ceticismo pela utopia, o abatimento pela esperança. A amargura algo nietzschiana, o desprezo pela razão que tanto prometera ao homem e, na verdade, teria sido apenas um instrumento para desumanizá-lo, uma certa nostalgia pré-socrática: nas últimas linhas de "Antes do Fim", tudo encontra uma espécie de luz. Sim, há uma luz no fim do túnel, parece dizer Sabato.


O Túnel
    





Antes do Fim
    Autor: Ernesto Sabato Tradução: Sérgio Molina Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 22 cada um ("O Túnel", 152 págs.; "Antes do fim", 168 págs.)




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