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LIVROS/LANÇAMENTOS
"O TÚNEL"/"ANTES DO FIM"
Sabato vê a luz sair das sombras
RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Só há um problema filosófico realmente sério: é o
suicídio", sentencia o franco-argelino Albert Camus em "O Mito
de Sísifo" (1942). Foi para escapar
do suicídio, conforme relembra
em "Antes do Fim" (99), seu livro
de memórias, que o ficcionista argentino Ernesto Sabato, 89 anos,
escreveu "O Túnel" (48), estreando no romance com uma obra
que o próprio Camus recomendaria para publicação na França.
Os dois títulos, que chegam simultaneamente às livrarias brasileiras -"Antes do Fim" pela primeira vez e "O Túnel" em nova
edição-, funcionam como uma
irrecusável introdução ao universo daquele que representa, ao lado de monumentos como Jorge
Luis Borges e Julio Cortázar, e de
Adolfo Bioy Casares, o que de
mais grandioso pôde fazer a literatura argentina no século 20.
Universo em que, vale ressaltar, o
biográfico e o fictício se esbarram
com frequência. Até porque, segundo o mexicano Octavio Paz,
os poetas (os escritores, de um
modo geral) não têm biografia:
sua obra é sua biografia.
Esclareça-se logo que Sabato
não matou "a única pessoa" capaz
de "compreendê-lo", como acontece com o pintor Juan Pablo Castel, o atormentado protagonista
de "O Túnel" (embora também
pinte). A vítima, María Iribarne,
começa a alcançar essa condição
depois que Castel a vê observando
um detalhe de uma pintura de sua
autoria, para o qual os críticos,
"essa praga que não consigo entender", na avaliação do artista-narrador, jamais haviam dado a
menor importância.
"Se eu fosse um grande cirurgião, e um senhor que nunca pegou num bisturi, nem é médico,
nem imobilizou a pata de um gato, viesse me explicar os erros de
minha operação, o que se pensaria? O mesmo acontece com a
pintura", argumenta ele, justificando sua repulsa pela tal praga.
Obcecado por María, Castel tem
um caso com ela. Ocorre que María é casada com um cego (de verdade) e parece ser amante do primo do marido, desenhando-se
aos olhos, também cegos (de ciúmes), do pintor, como uma prostituta. O desfecho não poderia ser
outro. O leitor toma conhecimento dele na primeira e contundente
linha do romance: "Bastará dizer
que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribarne".
Um dos prodígios deste livro
elegante e cruelmente irônico, de
estrutura próxima ao policial, escrito com algumas hesitações narrativas propositais -afinal, o
narrador é um artista plástico e
não um homem de letras-, está
nisso. "O Túnel" é, digamos, a
crônica de uma morte anunciada
(como o romance com esse nome
apresentado, muitos anos depois,
diante do pelotão de julgamento
dos leitores, pelo colombiano Gabriel García Márquez).
Não foi simples publicá-lo: todas as editoras o recusaram e só
com a ajuda financeira de um
amigo ele saiu na revista "Sur";
depois arrancaria elogios até do
alemão Thomas Mann. Com o rigor de seu estilo, "sua secura e intensidade" -nas palavras de Camus, em bilhete ao argentino, reproduzido em "Antes do Fim"-,
o autor mantém aceso o interesse
por "O Túnel", por mais que se
saiba o desfecho.
Se não há secura no livro de memórias de Sabato, a intensidade é
desconcertante. Para além disso,
o que aproxima ainda "Antes do
Fim" de "O Túnel", enredando
biografia e ficção, é a consciência
da incomunicabilidade entre os
homens. No fundo, esse foi o abismo para o qual Castel se lançou e
que Sabato precisou enfrentar até
as cercanias do suicídio.
Naqueles dias, ele vivia em Paris
como funcionário da Unesco e experimentava a pressão sem trégua
dos cientistas, inconformados
com sua decisão de abandonar
uma carreira brilhante de físico
-já havia passado pelo Laboratório Curie, na própria capital
francesa, graças a uma bolsa concedida por um Prêmio Nobel de
Medicina, depois transferida para
o sofisticadíssimo Massachusetts
Institute of Technology (Boston,
EUA)- em favor da literatura.
"Mergulhado numa profunda
depressão, frente às águas do Sena, subjugou-me a tentação do
suicídio. (...) Através da angústia,
em uma máquina portátil, comecei a escrever de maneira febril a
história de um pintor que tenta
desesperadamente se comunicar", conta, na primeira parte do
livro de memórias.
Antes, o escritor relatara suas
origens albanesas por parte de
mãe (ternuras), italianas pelo pai
(turras), os primeiros contatos
com a violência do mundo exterior, o engajamento precoce na
política e a precoce desilusão com
o comunismo, o casamento harmonioso e feliz com Matilde Kusminsky-Richter, a amizade com
os surrealistas, o dia em que, por
acaso, no campo, topou com um
jovem médico que seria conhecido como Ernesto "Che" Guevara.
Em "Talvez Seja o Fim", segunda parte das memórias, o romancista de "Sobre Heróis e Tumbas"
(58) expõe suas preocupações
com o mundo. Aqui, o Brasil é citado mais de uma vez, com suas
vergonhosas estatísticas sociais. É
nesse momento também que o
escritor ataca o neoliberalismo e
conta seu trabalho à frente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que desmascarou a repressão na Argentina durante a ditadura militar e gerou o livro "Nunca Mais".
Na terceira parte, Sabato volta-se outra vez para as próprias dores, agora centradas na perda do
filho Jorge Frederico e de Matilde.
É no epílogo que as memórias se
identificam menos com "O Túnel" ou consigo mesmas. Nele, o
escritor propõe uma comunhão
entre homens que resgate a humanidade. Troca a derrota pela
revanche, o ceticismo pela utopia,
o abatimento pela esperança. A
amargura algo nietzschiana, o
desprezo pela razão que tanto
prometera ao homem e, na verdade, teria sido apenas um instrumento para desumanizá-lo, uma
certa nostalgia pré-socrática: nas
últimas linhas de "Antes do Fim",
tudo encontra uma espécie de luz.
Sim, há uma luz no fim do túnel,
parece dizer Sabato.
O Túnel
Antes do Fim
Autor: Ernesto Sabato
Tradução: Sérgio Molina
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 22 cada um ("O Túnel", 152
págs.; "Antes do fim", 168 págs.)
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