São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2000

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"INFERNO"
Obra parece pular para as telas

BERNARDO AJZENBERG
DIRETOR DE CONTEÚDO DA FOLHA ONLINE

O escritor norte-americano Saul Below disse anos atrás que um dos maiores problemas da literatura contemporânea de seu país é o fato de os autores escreverem livros pensando desde o início na transposição da obra para o cinema.
À leitura do novo romance de Patrícia Melo, "Inferno", é exatamente essa a sensação predominante: a de que o texto foi elaborado com a ficcionista de cabeça voltada também -conscientemente ou não, pouco importa- para sua adaptação à tela.
Roteirista competente e experiente que é, Patrícia Melo tem feito isso de certo modo desde o primeiro livro, "Acqua Toffana", de 94. Mas sem dúvida este seu quarto romance é o mais marcado por essa característica. Se isso representa um projeto artístico deliberado, não é em si mesmo nem bom nem ruim. Mas certamente desperta uma discussão sobre o que é a arte da ficção.
"Inferno" conta a história de um menino de morro carioca, o Reizinho, que cresce junto aos traficantes, aprende e trabalha para eles, para depois tornar-se líder. Como o leitor espera desde a primeira página, na história encontrará todos os temas que têm sido tratados à exaustão pela TV e pela mídia de forma geral: banalização da violência, conflitos entre gangues, domínio das favelas por bandidos "benfeitores", futebol, escola de samba. Nesse aspecto a autora pouco surpreende.
Patrícia tem grande habilidade e domínio técnico. Com frases curtas, uso constante de onomatopéias ("ploc", por exemplo, repetidamente adotado para indicar que tal traficante está sempre mascando chiclete), intercalação de frases e pensamentos de diferentes personagens e permanente variação de cenas, adoção de gírias e expressões típicas -com a exploração desses recursos, a escritora facilmente transpõe o leitor para o ambiente que deseja retratar. Esse o seu grande mérito -e, também, o seu problema.
Tudo parece ter sido escrito para ser visualizado, de preferência numa tela gigante, e não apenas para ser lido. A leitura fica ágil -por competência da escritora-, é fácil enxergar tudo, como se estivéssemos... vendo um filme (apenas um tanto acelerado demais nos acontecimentos finais, quando Patrícia parece ter sentido necessidade de apressar o término de seu trabalho). O texto, porém, na busca desse efeito, fica inelástico em termos literários. Restringe no leitor os seus próprios vôos de imaginação. Aprisiona-o, a rigor, na imaginação da autora.
Claro, o livro funciona bastante bem como painel, quase uma reportagem romanceada, daquilo que acontece nas favelas cariocas e em torno delas: a invasão da cultura do hip hop, o uso incrivelmente precoce de drogas e do assassinato como algo natural, o conluio entre policiais e bandidagem, a corrupção, as traições sucessivas dentro dos grupos armados, o crescimento de seitas evangélicas entre a população pobre, a hipocrisia reinante em casais de classe média alta.
Como outros autores antes, no entanto, Patrícia Melo caiu numa armadilha enquanto ficcionista: a de priorizar a situação social, o ambiente previamente definido, em vez de se preocupar mais com a estrutura íntima dos personagens (para emprestar uma expressão citada pelo crítico Álvaro Lins) e, a partir daí, deixar se desenvolverem o enredo e as ações sociais. Perdeu com isso em termos de arte literária. Daí os personagens de comportamento previsível, estereotipado, e os cenários pouco originais do livro.
Pelos méritos que possui, "Inferno" deverá vender bem, aqui e no exterior. E ninguém que o leia ficará surpreso se estiver nas telas de cinema, ou de TV, dentro de pouco tempo. As interrogações levantadas pelo livro sobre a arte de ficção, porém, continuarão a existir.


Inferno    
Autora: Patrícia Melo Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29 (368 págs.)




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