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"INFERNO"
Obra parece pular para as telas
BERNARDO AJZENBERG
DIRETOR DE CONTEÚDO DA FOLHA ONLINE
O escritor norte-americano Saul Below disse anos
atrás que um dos maiores problemas da literatura contemporânea
de seu país é o fato de os autores
escreverem livros pensando desde o início na transposição da
obra para o cinema.
À leitura do novo romance de
Patrícia Melo, "Inferno", é exatamente essa a sensação predominante: a de que o texto foi elaborado com a ficcionista de cabeça
voltada também -conscientemente ou não, pouco importa-
para sua adaptação à tela.
Roteirista competente e experiente que é, Patrícia Melo tem feito isso de certo modo desde o primeiro livro, "Acqua Toffana", de
94. Mas sem dúvida este seu quarto romance é o mais marcado por
essa característica. Se isso representa um projeto artístico deliberado, não é em si mesmo nem
bom nem ruim. Mas certamente
desperta uma discussão sobre o
que é a arte da ficção.
"Inferno" conta a história de
um menino de morro carioca, o
Reizinho, que cresce junto aos
traficantes, aprende e trabalha para eles, para depois tornar-se líder. Como o leitor espera desde a
primeira página, na história encontrará todos os temas que têm
sido tratados à exaustão pela TV e
pela mídia de forma geral: banalização da violência, conflitos entre
gangues, domínio das favelas por
bandidos "benfeitores", futebol,
escola de samba. Nesse aspecto a
autora pouco surpreende.
Patrícia tem grande habilidade e
domínio técnico. Com frases curtas, uso constante de onomatopéias ("ploc", por exemplo, repetidamente adotado para indicar
que tal traficante está sempre
mascando chiclete), intercalação
de frases e pensamentos de diferentes personagens e permanente
variação de cenas, adoção de gírias e expressões típicas -com a
exploração desses recursos, a escritora facilmente transpõe o leitor para o ambiente que deseja retratar. Esse o seu grande mérito
-e, também, o seu problema.
Tudo parece ter sido escrito para ser visualizado, de preferência
numa tela gigante, e não apenas
para ser lido. A leitura fica ágil
-por competência da escritora-, é fácil enxergar tudo, como
se estivéssemos... vendo um filme
(apenas um tanto acelerado demais nos acontecimentos finais,
quando Patrícia parece ter sentido necessidade de apressar o término de seu trabalho). O texto,
porém, na busca desse efeito, fica
inelástico em termos literários.
Restringe no leitor os seus próprios vôos de imaginação. Aprisiona-o, a rigor, na imaginação da
autora.
Claro, o livro funciona bastante
bem como painel, quase uma reportagem romanceada, daquilo
que acontece nas favelas cariocas
e em torno delas: a invasão da cultura do hip hop, o uso incrivelmente precoce de drogas e do assassinato como algo natural, o
conluio entre policiais e bandidagem, a corrupção, as traições sucessivas dentro dos grupos armados, o crescimento de seitas evangélicas entre a população pobre, a
hipocrisia reinante em casais de
classe média alta.
Como outros autores antes, no
entanto, Patrícia Melo caiu numa
armadilha enquanto ficcionista: a
de priorizar a situação social, o
ambiente previamente definido,
em vez de se preocupar mais com
a estrutura íntima dos personagens (para emprestar uma expressão citada pelo crítico Álvaro
Lins) e, a partir daí, deixar se desenvolverem o enredo e as ações
sociais. Perdeu com isso em termos de arte literária. Daí os personagens de comportamento previsível, estereotipado, e os cenários
pouco originais do livro.
Pelos méritos que possui, "Inferno" deverá vender bem, aqui e
no exterior. E ninguém que o leia
ficará surpreso se estiver nas telas
de cinema, ou de TV, dentro de
pouco tempo. As interrogações
levantadas pelo livro sobre a arte
de ficção, porém, continuarão a
existir.
Inferno
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Autora: Patrícia Melo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (368 págs.)
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