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RESENHA DA SEMANA
Brincando de adulto
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
O talento do escritor britânico de origem japonesa
Kazuo Ishiguro, 46, a julgar por
seus romances anteriores, e sobretudo pelo notável "Os Vestígios do Dia", funciona melhor
em composições romanescas
realistas.
Seus melhores livros estão
mais para uma releitura do romance inglês do século 19 do
que para Beckett ou mesmo
Proust, com quem ele até poderia ser comparado, nem que fosse apenas por fazer da passagem
do tempo o alicerce da sua obra.
Quando tentou abandonar o
romance psicológico de fundo
histórico para se aventurar por
uma representação mais alegórica e absurda em "O Desconsolado", Ishiguro logo derrapou
no lugar-comum de um pastiche kafkiano.
"When We Were Orphans"
(Quando Éramos Órfãos), seu
mais novo romance, recém-publicado nos Estados Unidos,
meses depois da edição inglesa
(a brasileira deve sair em novembro, pela Companhia das
Letras), é uma curiosa mistura
das duas coisas, realismo e alegoria, o que explica a sensação
de inverosimilhança que às vezes provoca.
A passagem do tempo continua sendo fundamental para a
trama romanesca de Ishiguro: a
idéia de que cada geração é um
mundo que se desenvolve e se
extingue, deixando os vestígios
de uma história a ser retraçada
pela memória. Mas agora, à
idéia de que os velhos guardam
romances em potencial, vem se
combinar uma outra, reforçada
pelo título: que a infância é um
estado de ilusão que os adultos
tentam reproduzir em vão.
"When We Were Orphans" é
marcado por essa visão infantil.
Como num conto de fadas, o
narrador, ao mesmo tempo que
tenta expurgar o mal que teria
corrompido a inocência de sua
infância, continua ignorando o
tempo, segue agindo e compreendendo o mundo que o cerca como se ainda fosse uma
criança. Narrado de forma realista, esse comportamento produz umas tantas contradições,
como o fato de o protagonista se
desculpar o tempo inteiro por
não se lembrar bem das coisas
que conta com riqueza de detalhes.
Nascido na China, filho de um
casal de ingleses que desapareceram misteriosamente em
Xangai, no início do século,
quando ele tinha apenas 9 anos,
o narrador, transformado em
"órfão" pelo sumiço inexplicável dos pais, é criado por uma tia
na Inglaterra. Mais de 20 anos
depois, ele resolve voltar a Xangai para tentar solucionar o mistério, às vésperas da Segunda
Guerra e com os japoneses invadindo a cidade.
O pai era funcionário de uma
empresa inglesa que, como tantas outras na China do começo
do século, usava o tráfico de
ópio para subjugar o país aos interesses internacionais. Quando
desaparece sem deixar rastros,
ao filho ainda pequeno só resta
brincar de detetive com um vizinho japonês, como uma forma
de lidar com a tragédia.
Pouco depois do pai, é a vez da
mãe, militante veemente contra
o tráfico e a participação dos ingleses nesse processo escuso de
colonização. Com o desaparecimento dela, o menino é enviado
para a Inglaterra, onde acaba se
tornando um detetive famoso.
Como se continuasse a brincar,
adapta a vida adulta à fantasia
infantil para "resolver" a perda
20 anos depois.
Análoga aos romances clássicos, a brincadeira de detetive na
infância tem um efeito pacificador ao estabelecer uma narrativa imaginária linear que dá sentido ao caos inexplicável do real.
É possível que Ishiguro tenha
querido frisar essa analogia ao
optar por uma alegoria típica
dos mitos neste romance ao
mesmo tempo realista: o desaparecimento dos pais e a descida
do filho adulto aos infernos de
uma cidade destruída e em
guerra, para salvá-los a despeito
de um intervalo de mais de 20
anos.
Só que, ao contar sua história
sob uma ótica psicológica tradicional, pontuada por cenas comoventes, uma forma especialmente adequada às visualizações cinematográficas de época
do tipo Ivory/Merchant, que já
adaptaram "Os Vestígios do
Dia", ele terminou por criar um
curto-circuito: a infantilidade
do protagonista o torna tolo, os
sentimentos e os atos são por
demais intempestivos e as coincidências, as mais improváveis.
When We Were Orphans
Autor: Kazuo Ishiguro
Editora: Knopf
Quanto: US$ 25 (340 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com,
www.bn.com
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