São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
Brincando de adulto

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O talento do escritor britânico de origem japonesa Kazuo Ishiguro, 46, a julgar por seus romances anteriores, e sobretudo pelo notável "Os Vestígios do Dia", funciona melhor em composições romanescas realistas.
Seus melhores livros estão mais para uma releitura do romance inglês do século 19 do que para Beckett ou mesmo Proust, com quem ele até poderia ser comparado, nem que fosse apenas por fazer da passagem do tempo o alicerce da sua obra.
Quando tentou abandonar o romance psicológico de fundo histórico para se aventurar por uma representação mais alegórica e absurda em "O Desconsolado", Ishiguro logo derrapou no lugar-comum de um pastiche kafkiano.
"When We Were Orphans" (Quando Éramos Órfãos), seu mais novo romance, recém-publicado nos Estados Unidos, meses depois da edição inglesa (a brasileira deve sair em novembro, pela Companhia das Letras), é uma curiosa mistura das duas coisas, realismo e alegoria, o que explica a sensação de inverosimilhança que às vezes provoca.
A passagem do tempo continua sendo fundamental para a trama romanesca de Ishiguro: a idéia de que cada geração é um mundo que se desenvolve e se extingue, deixando os vestígios de uma história a ser retraçada pela memória. Mas agora, à idéia de que os velhos guardam romances em potencial, vem se combinar uma outra, reforçada pelo título: que a infância é um estado de ilusão que os adultos tentam reproduzir em vão.
"When We Were Orphans" é marcado por essa visão infantil. Como num conto de fadas, o narrador, ao mesmo tempo que tenta expurgar o mal que teria corrompido a inocência de sua infância, continua ignorando o tempo, segue agindo e compreendendo o mundo que o cerca como se ainda fosse uma criança. Narrado de forma realista, esse comportamento produz umas tantas contradições, como o fato de o protagonista se desculpar o tempo inteiro por não se lembrar bem das coisas que conta com riqueza de detalhes.
Nascido na China, filho de um casal de ingleses que desapareceram misteriosamente em Xangai, no início do século, quando ele tinha apenas 9 anos, o narrador, transformado em "órfão" pelo sumiço inexplicável dos pais, é criado por uma tia na Inglaterra. Mais de 20 anos depois, ele resolve voltar a Xangai para tentar solucionar o mistério, às vésperas da Segunda Guerra e com os japoneses invadindo a cidade.
O pai era funcionário de uma empresa inglesa que, como tantas outras na China do começo do século, usava o tráfico de ópio para subjugar o país aos interesses internacionais. Quando desaparece sem deixar rastros, ao filho ainda pequeno só resta brincar de detetive com um vizinho japonês, como uma forma de lidar com a tragédia.
Pouco depois do pai, é a vez da mãe, militante veemente contra o tráfico e a participação dos ingleses nesse processo escuso de colonização. Com o desaparecimento dela, o menino é enviado para a Inglaterra, onde acaba se tornando um detetive famoso. Como se continuasse a brincar, adapta a vida adulta à fantasia infantil para "resolver" a perda 20 anos depois.
Análoga aos romances clássicos, a brincadeira de detetive na infância tem um efeito pacificador ao estabelecer uma narrativa imaginária linear que dá sentido ao caos inexplicável do real. É possível que Ishiguro tenha querido frisar essa analogia ao optar por uma alegoria típica dos mitos neste romance ao mesmo tempo realista: o desaparecimento dos pais e a descida do filho adulto aos infernos de uma cidade destruída e em guerra, para salvá-los a despeito de um intervalo de mais de 20 anos.
Só que, ao contar sua história sob uma ótica psicológica tradicional, pontuada por cenas comoventes, uma forma especialmente adequada às visualizações cinematográficas de época do tipo Ivory/Merchant, que já adaptaram "Os Vestígios do Dia", ele terminou por criar um curto-circuito: a infantilidade do protagonista o torna tolo, os sentimentos e os atos são por demais intempestivos e as coincidências, as mais improváveis.


When We Were Orphans
   
Autor: Kazuo Ishiguro Editora: Knopf Quanto: US$ 25 (340 págs.) Onde encontrar: www.amazon.com, www.bn.com




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