São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2008

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ARTIGO

Uma reflexão necessária

Para curador da Bienal, conselhos da instituição e de museus deveriam se empenhar num processo de autocrítica e reciclagem

IVO MESQUITA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao contrário do que parece ser a interpretação difundida pela Folha em dois artigos publicados na semana passada, nunca houve uma cisão na comunicação entre a presidência da Fundação Bienal de SP e a curadoria da 28ª Bienal.
Desde o princípio, a relação entre elas tem sido marcada por parâmetros técnicos e profissionais, visando à melhor implantação do projeto contratado. Evidentemente, no processo de trabalho, surgem diferenças de posição, interpretação ou procedimentos, mas para isso existe o diálogo. É nesse contexto que deve ser entendida "a carta" interceptada pela Folha que deu origem à polêmica: uma troca de argumentos entre a curadoria e a presidência, algo natural do processo de trabalho. No mais, a questão parece encerrada e os trabalhos no pavilhão estão a todo vapor.
Entretanto, como a 28ª Bienal propõe uma reflexão sobre o modelo, o sistema e a economia das bienais, em particular a de São Paulo, acredito que esse episódio merece uma análise.
Primeiro, é preciso reconhecer que não adianta expor as entranhas e os processos internos das instituições de forma atabalhoada e sensacionalista.
Falsas polêmicas não mudam nada, só comprometem o bom andamento dos trabalhos no interior da organização. É preciso aprofundar a reflexão.
O tom utilizado nos recentes artigos leva a uma compreensão errônea e simplista dos processos no interior do sistema das artes. A meu ver, o problema, evidenciado com a publicação da "carta", não está em quem responde nominalmente pela instituição. Ele precede qualquer nome ungido pelos seus pares para a honra de dirigir a Bienal.
A questão tem raízes históricas, que não podem ser esquecidas. É fundamental levar em conta o modelo de sociedade civil e filantrópica que deu origem ao Masp, aos MAMs do Rio e de São Paulo e à irmã temporã deles, a Bienal de São Paulo.
Ao final dos anos 40, a referência de Assis Chateaubriand, Niomar Moniz Sodré e Ciccillo Matarazzo, criadores daquelas instituições, era Nelson Rockefeller, e o modelo de museu que tinham em mente era o de arte moderna de Nova York, com seu poderoso conselho curador. Lá, assim como em quase todos os museus americanos, os membros dos conselhos pagam para fazer parte e transferem aos museus, ao longo da vida, suas fortunas e coleções.
Foi assim que os americanos construíram alguns dos melhores museus do mundo e fizeram do MoMA uma estratégia na Guerra Fria e na globalização. Entretanto, por aqui, o modelo não funcionou, a despeito de muitas exceções, pois ele supõe que os presidentes, diretores e conselheiros dessas entidades ponham dinheiro de seus bolsos para o bom funcionamento das organizações e do alcance de seus objetivos institucionais, já que o Estado, a princípio, não participaria dessas sociedades.
Evidente que existem diferenças históricas e culturais entre as duas sociedades. No Brasil, a grande contradição dessas ações da iniciativa privada na cultura é que elas, quase sempre, trabalham com recursos financeiros transferidos pelo Estado, isto é, são fundações sem fundos!

Novas estruturas
Se o momento é de reflexão, talvez os conselhos curadores dessas entidades pudessem empenhar-se num processo de análise profunda, de autocrítica sincera, para pensarem numa reciclagem de suas organizações. Não é mais possível manter modelos disfuncionais, estruturas desligadas dos contextos em que se inscrevem, nem organizações defasadas em suas estratégias econômicas, ineficientes no cumprimento de seus programas. São necessárias novas estruturas, novos organogramas, atualizando as funções. Não é uma questão de alternância do poder, nem de novas regras de comportamento, mas antes de definir papéis claros, compromissos estáveis diante da história e das especificidades da instituição. É interessante notar que muitos dos conselheiros, nas diversas instituições, são conhecidos empresários de sucesso. Sendo assim, por que não conseguem imprimir ao museu a mesma qualidade de planejamento e gestão com que dirigem seus negócios? O que ficou disfuncional na relação entre o empresariado e a instituição cultural privada? Se essa reflexão não for feita, continuaremos a assistir, de tempos em tempos, a tempestades que não modificam nada, como a da semana passada na Bienal de São Paulo. Os técnicos e profissionais do setor querem seguir trabalhando. Para isso, é preciso que conselhos curadores preparados juntem-se a eles na construção de algo verdadeiramente coletivo.

IVO MESQUITA é curador-chefe da 28ª Bienal de São Paulo



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