São Paulo, Sábado, 30 de Outubro de 1999
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LIVRO - LANÇAMENTOS
Singer cria porta-vozes de suas convicções

MARCELO COELHO
do Conselho Editorial


Isaac Bashevis Singer (1904-1991), prêmio Nobel de 1978, obteve amplo reconhecimento do mundo literário com suas histórias situadas em aldeias judaicas da Europa Central, onde o peso da tradição e o mundo dos espíritos adquiriam dimensões morais e imaginativas fascinantes.
"Sombras sobre o Rio Hudson" é um romance amargo, áspero e punitivo que foi originalmente publicado na forma de folhetim, num jornal iídiche dos Estados Unidos, na década de 50.
A ação se passa em Nova York, logo depois do fim da Segunda Guerra. Retrata o mundo dos judeus de classe alta e média-alta, salvos do massacre nazista, ao tempo em que crescem a sociedade de consumo e a euforia americana.
O tema, por si só, vale a leitura do romance. Encena-se o desajuste de personagens educados na civilização européia diante do hedonismo de uma nascente cultura de massas, diante da indiferença brutal e efusiva da América.
Ao mesmo tempo, a civilização européia parece nada ter oferecido aos judeus senão massacres e perseguições. E o que o judaísmo oferece a eles? Uma ortodoxia religiosa, incapaz de dar conta dos prazeres e tentações da modernidade... Ou uma fé que não pode explicar os horrores do nazismo.
Um círculo vicioso se fecha então, dando ao romance de Singer seu tom claustrofóbico e pessimista.
Desse conjunto de problemas, Bashevis Singer fez, entretanto, pouco mais que um folhetim. O fato de "Sombras sobre o Rio Hudson" estar sendo agora reeditado em livro não esconde os principais defeitos do gênero folhetinesco: encontros improváveis entre personagens, cores carregadas na descrição de cada um deles, armadilhas previsíveis do destino.
Em toda novela de televisão ou em quase todo folhetim existe a meu ver um problema estético complicado. É preciso insistir na verossimilhança das situações, mas ao mesmo tempo jogar com a surpresa e a expectativa a cada capítulo. O resultado é que o autor tende a forçar tanto a verossimilhança quanto a surpresa; o risco de tudo parecer mecânico se torna inevitável.
Para que isto não pareça mera implicância com Bashevis Singer, esclareço que os romances de Balzac muitas vezes me produzem a mesma impressão. Mas em Balzac, pelo menos, havia um personagem heróico, um aventureiro, a fazer com que a forma folhetinesca se adequasse à impetuosidade, ao misto de acaso e de destino, que caracterizava o protagonista.
Em "Sombras sobre o Rio Hudson" não há protagonistas desse tipo. Como numa novela, há vários personagens que se entrecruzam, sem que ninguém tenha o estofo de conduzir a narrativa. Certamente, os problemas desse romance se concentram na figura de Hertz Grein, antigo menino-prodígio, às voltas com três mulheres. É casado com Leah, é amante de Esther e abandona tudo para ficar com Anna.
O adultério de Grein desencadeia toda a história. Mas é como se a história, de um lado, se desenvolvesse a contragosto -pois o que interessa ao autor são as conclusões morais que se podem tirar dela. De outro lado, é como se a história tivesse de prosseguir com surpresas e mais surpresas -pois as conclusões morais que o autor quer tirar não têm fôlego suficiente para interessar o leitor.
Assim, volta e meia um personagem se dedica a indagações metafísicas. O romance fraqueja em banalidades. Poderíamos pensar que a banalidade vem do personagem, não do autor. Mas vários personagens repetem as mesmas perguntas, tornando inevitável a conclusão de que é o próprio Singer quem se debate, em linguagem óbvia, sobre a bondade de Deus, sua justiça ou sua inexistência.
Como estas perguntas são de difícil resposta, a um bom autor só resta dramatizá-las, fazendo com que penetrem nas entranhas de seus personagens. É o caso de Dostoiévski, por exemplo. Como não foi capaz de dar tamanha densidade a suas criaturas, Bashevis Singer as fez porta-vozes de suas convicções.
E como essas convicções são problemáticas, duvidosas, no século em que estamos, o autor inventou um personagem, Hertz Grein, que se qualifica ao mesmo tempo como protagonista, como pecador e como redimido.
As últimas páginas do livro exprimem o arrependimento de Grein e sua adesão à fé judaica ortodoxa: "Não existe judeu sem barba e "peiot" sem roupa de baixo com franjas... Basta afastar-se um passo do judaísmo para se ver no meio de idólatras e assassinos e criar filhos que se casam com nazistas".
A dramaticidade, o desespero desse trecho dizem muito a respeito das convicções do autor, que podemos respeitar. Mas há aqui um extremismo, uma ortodoxia, a que o recurso ficcional não responde bem; e aos quais a realidade, felizmente mais tolerante e cética atualmente, responde menos ainda. Entre a ortodoxia e a imaginação, Singer escolheu o pior dos dois mundos.


Avaliação:   

Livro: Sombras sobre o Rio Hudson Autor: Isaac Bashevis Singer Tradutor: Paulo Henriques Britto (a partir da tradução em inglês de Joseph Shermann do original iídiche) Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 35,50 (562 págs.)

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