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LIVRO - LANÇAMENTOS
Singer cria porta-vozes de suas convicções
MARCELO COELHO
do Conselho Editorial
Isaac Bashevis
Singer (1904-1991),
prêmio Nobel de
1978, obteve amplo
reconhecimento do
mundo literário
com suas histórias situadas em aldeias judaicas da Europa Central,
onde o peso da tradição e o mundo dos espíritos adquiriam dimensões morais e imaginativas
fascinantes.
"Sombras sobre o Rio Hudson"
é um romance amargo, áspero e
punitivo que foi originalmente
publicado na forma de folhetim,
num jornal iídiche dos Estados
Unidos, na década de 50.
A ação se passa em Nova York,
logo depois do fim da Segunda
Guerra. Retrata o mundo dos judeus de classe alta e média-alta,
salvos do massacre nazista, ao
tempo em que crescem a sociedade de consumo e a euforia americana.
O tema, por si só, vale a leitura
do romance. Encena-se o desajuste de personagens educados na civilização européia diante do hedonismo de uma nascente cultura
de massas, diante da indiferença
brutal e efusiva da América.
Ao mesmo tempo, a civilização
européia parece nada ter oferecido aos judeus senão massacres e
perseguições. E o que o judaísmo
oferece a eles? Uma ortodoxia religiosa, incapaz de dar conta dos
prazeres e tentações da modernidade... Ou uma fé que não pode
explicar os horrores do nazismo.
Um círculo vicioso se fecha então, dando ao romance de Singer
seu tom claustrofóbico e pessimista.
Desse conjunto de problemas,
Bashevis Singer fez, entretanto,
pouco mais que um folhetim. O
fato de "Sombras sobre o Rio
Hudson" estar sendo agora reeditado em livro não esconde os
principais defeitos do gênero folhetinesco: encontros improváveis entre personagens, cores carregadas na descrição de cada um
deles, armadilhas previsíveis do
destino.
Em toda novela de televisão ou
em quase todo folhetim existe a
meu ver um problema estético
complicado. É preciso insistir na
verossimilhança das situações,
mas ao mesmo tempo jogar com
a surpresa e a expectativa a cada
capítulo. O resultado é que o autor tende a forçar tanto a verossimilhança quanto a surpresa; o risco de tudo parecer mecânico se
torna inevitável.
Para que isto não pareça mera
implicância com Bashevis Singer,
esclareço que os romances de Balzac muitas vezes me produzem a
mesma impressão. Mas em Balzac, pelo menos, havia um personagem heróico, um aventureiro, a
fazer com que a forma folhetinesca se adequasse à impetuosidade,
ao misto de acaso e de destino,
que caracterizava o protagonista.
Em "Sombras sobre o Rio Hudson" não há protagonistas desse
tipo. Como numa novela, há vários personagens que se entrecruzam, sem que ninguém tenha o
estofo de conduzir a narrativa.
Certamente, os problemas desse
romance se concentram na figura
de Hertz Grein, antigo menino-prodígio, às voltas com três mulheres. É casado com Leah, é
amante de Esther e abandona tudo para ficar com Anna.
O adultério de Grein desencadeia toda a história. Mas é como
se a história, de um lado, se desenvolvesse a contragosto -pois o
que interessa ao autor são as conclusões morais que se podem tirar
dela. De outro lado, é como se a
história tivesse de prosseguir com
surpresas e mais surpresas -pois
as conclusões morais que o autor
quer tirar não têm fôlego suficiente para interessar o leitor.
Assim, volta e meia um personagem se dedica a indagações
metafísicas. O romance fraqueja
em banalidades. Poderíamos
pensar que a banalidade vem do
personagem, não do autor. Mas
vários personagens repetem as
mesmas perguntas, tornando inevitável a conclusão de que é o próprio Singer quem se debate, em
linguagem óbvia, sobre a bondade de Deus, sua justiça ou sua inexistência.
Como estas perguntas são de difícil resposta, a um bom autor só
resta dramatizá-las, fazendo com
que penetrem nas entranhas de
seus personagens. É o caso de
Dostoiévski, por exemplo. Como
não foi capaz de dar tamanha
densidade a suas criaturas, Bashevis Singer as fez porta-vozes de
suas convicções.
E como essas convicções são
problemáticas, duvidosas, no século em que estamos, o autor inventou um personagem, Hertz
Grein, que se qualifica ao mesmo
tempo como protagonista, como
pecador e como redimido.
As últimas páginas do livro exprimem o arrependimento de
Grein e sua adesão à fé judaica ortodoxa: "Não existe judeu sem
barba e "peiot" sem roupa de baixo
com franjas... Basta afastar-se um
passo do judaísmo para se ver no
meio de idólatras e assassinos e
criar filhos que se casam com nazistas".
A dramaticidade, o desespero
desse trecho dizem muito a respeito das convicções do autor,
que podemos respeitar. Mas há
aqui um extremismo, uma ortodoxia, a que o recurso ficcional
não responde bem; e aos quais a
realidade, felizmente mais tolerante e cética atualmente, responde menos ainda. Entre a ortodoxia e a imaginação, Singer escolheu o pior dos dois mundos.
Avaliação:
Livro: Sombras sobre o Rio Hudson
Autor: Isaac Bashevis Singer
Tradutor: Paulo Henriques Britto (a
partir da tradução em inglês de Joseph
Shermann do original iídiche)
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35,50 (562 págs.)
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