São Paulo, Sábado, 30 de Outubro de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Vida animal

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


O sul-africano J.M. Coetzee, 59, recebeu, na última segunda-feira, o mais prestigioso prêmio literário britânico, o Booker Prize, pelo romance "Disgrace" (Degradação).
Coetzee é o primeiro escritor a ser premiado duas vezes com o Booker -já tinha levado o prêmio em 83, com o romance "Cio da Terra - Vida e Morte de Michael K." ("Life and Times of Michael K"), sobre um sujeito cuja condição mental não lhe permite compreender a situação em que se vê envolvido, durante uma guerra civil num país sem nome.
Coetzee é um dos escritores mais interessantes e originais da África do Sul. Sua narrativa é discretamente engenhosa. Sua prosa, embora por vezes considerada experimental, tende para o clássico. Professor de literatura na Universidade da Cidade do Cabo, escreveu oito romances, entre eles, o recente "Dostoiévski, o Mestre de São Petersburgo" ("The Master of Petersburg"), além de obras de não-ficção, como o autobiográfico "Cenas de Uma Vida" ("Boyhood: Scenes from Provincial Life").
"Disgrace" pode ser lido como o relato inconformado e perplexo de um professor de meia-idade que se vê encurralado diante da inadequação de seu desejo e de sua visão de mundo a uma nova realidade baseada em valores que escapam ao bom senso e aos princípios de sua formação humanista. Um mundo em que o desejo foi reduzido a abuso.
Aos 52 anos, esse professor de literatura divorciado tem um brevíssimo caso amoroso com uma de suas alunas e acaba sendo obrigado a renunciar à cátedra depois de sofrer um processo público de humilhação.
Mas "Disgrace" não é um tratado ilustrativo sobre os princípios do juízo humanista contrapostos aos excessos e às intolerâncias dos valores politicamente corretos. É, antes, um livro sobre o desejo e a violência dos homens, de um ponto de vista clarividente e terrível, capaz de compreendê-los dentro da mesma lógica compassiva de quem, por caridade, é levado a sacrificar cães doentes e abandonados.
Um dos livros de não-ficção de Coetzee traz justamente o título de "The Life of Animals" (A Vida dos Animais). E a grande tensão de "Disgrace" se dá entre o mundo da civilização e a barbárie da realidade, na constatação de que a perspectiva culturalista e universitária não só não dá conta da vida, mas pode ser massacrada pela violência de homens que se comportam, indiferentes a qualquer preceito civilizador, como animais.
Ao deixar seu cargo na universidade, o professor busca refúgio na fazendola da filha, uma jovem lésbica, recém-abandonada pela companheira, que vive sozinha, cercada de cachorros (e homens embrutecidos), numa terra de ninguém.
Em suas aulas sobre os poetas românticos ingleses, o professor costumava pregar: "A questão não é: Como podemos manter a imaginação pura, protegida dos ataques da realidade? A questão tem de ser: Podemos encontrar uma maneira de fazer as duas coexistir?".
É o que ele vai acabar testando, na prática, ao lado da filha. Embora nessa descida aos infernos da realidade só encontre degradação ao tentar manter sua imaginação literária.
Todo o problema em "Disgrace" está no embate entre um ponto de vista adulto e civilizado e uma realidade infantilizada e bárbara. São pólos inconciliáveis. O ponto de vista da cultura humanista não tem mais qualquer efeito sobre a realidade embrutecida. As citações cultas com que costumava pontuar os fatos de sua vida já não ensinam nada ao professor. "Ele fala italiano, ele fala francês, mas o italiano e o francês não vão salvá-lo aqui na escuridão da África."
Paralelamente ao trauma a que é submetido ao lado da filha, e tentando salvá-la desse horror, ele tenta sem sucesso escrever uma ópera sobre Byron. O paradoxo, nesse caso, é que a arte parece servir de defesa contra a barbárie, mas sua sobrevivência (de uma arte verdadeira) depende mais de um confronto muitas vezes violento com essa realidade inculta do que de uma mera reprodução apaziguadora dentro da história da cultura.
E é isso que o professor termina por compreender na degradação, em um processo que o faz tornar-se animal, pôr-se na pele dos cães que ele ajuda a matar, por caridade, como auxiliar de uma clínica veterinária.
"Não existe vida superior. Esta é a única vida. Que compartilhamos com os animais. (...) É o exemplo que tento seguir. Compartilhar parte do nosso privilégio humano com as bestas", diz a filha. E o pai, ainda sem perceber que estão falando a mesma língua, lhe faz eco ao justificar os atos que o levaram a ser banido da vida universitária para cair na "vida animal": "Nenhum animal aceitará a justiça de ser punido por ter seguido seus instintos".


Avaliação:   

Livro: Disgrace Autor: J.M. Coetzee Editora: Secker and Warburg (Inglaterra) Quanto: R$ 45 (220 págs.) Onde encomendar: www.bol.co.uk e www.waterstones.co.uk

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