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RESENHA DA SEMANA
Vida animal
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O sul-africano
J.M. Coetzee, 59,
recebeu, na última segunda-feira, o mais prestigioso prêmio literário britânico, o Booker Prize, pelo romance "Disgrace"
(Degradação).
Coetzee é o primeiro escritor
a ser premiado duas vezes com
o Booker -já tinha levado o
prêmio em 83, com o romance
"Cio da Terra - Vida e Morte de
Michael K." ("Life and Times
of Michael K"), sobre um sujeito cuja condição mental não
lhe permite compreender a situação em que se vê envolvido,
durante uma guerra civil num
país sem nome.
Coetzee é um dos escritores
mais interessantes e originais
da África do Sul. Sua narrativa
é discretamente engenhosa.
Sua prosa, embora por vezes
considerada experimental, tende para o clássico. Professor de
literatura na Universidade da
Cidade do Cabo, escreveu oito
romances, entre eles, o recente
"Dostoiévski, o Mestre de São
Petersburgo" ("The Master of
Petersburg"), além de obras de
não-ficção, como o autobiográfico "Cenas de Uma Vida"
("Boyhood: Scenes from Provincial Life").
"Disgrace" pode ser lido como o relato inconformado e
perplexo de um professor de
meia-idade que se vê encurralado diante da inadequação de
seu desejo e de sua visão de
mundo a uma nova realidade
baseada em valores que escapam ao bom senso e aos princípios de sua formação humanista. Um mundo em que o desejo
foi reduzido a abuso.
Aos 52 anos, esse professor
de literatura divorciado tem
um brevíssimo caso amoroso
com uma de suas alunas e acaba sendo obrigado a renunciar
à cátedra depois de sofrer um
processo público de humilhação.
Mas "Disgrace" não é um tratado ilustrativo sobre os princípios do juízo humanista contrapostos aos excessos e às intolerâncias dos valores politicamente corretos. É, antes, um
livro sobre o desejo e a violência dos homens, de um ponto
de vista clarividente e terrível,
capaz de compreendê-los dentro da mesma lógica compassiva de quem, por caridade, é levado a sacrificar cães doentes e
abandonados.
Um dos livros de não-ficção
de Coetzee traz justamente o título de "The Life of Animals"
(A Vida dos Animais). E a
grande tensão de "Disgrace" se
dá entre o mundo da civilização e a barbárie da realidade,
na constatação de que a perspectiva culturalista e universitária não só não dá conta da vida, mas pode ser massacrada
pela violência de homens que
se comportam, indiferentes a
qualquer preceito civilizador,
como animais.
Ao deixar seu cargo na universidade, o professor busca
refúgio na fazendola da filha,
uma jovem lésbica, recém-abandonada pela companheira, que vive sozinha, cercada de
cachorros (e homens embrutecidos), numa terra de ninguém.
Em suas aulas sobre os poetas
românticos ingleses, o professor costumava pregar: "A questão não é: Como podemos
manter a imaginação pura,
protegida dos ataques da realidade? A questão tem de ser: Podemos encontrar uma maneira
de fazer as duas coexistir?".
É o que ele vai acabar testando, na prática, ao lado da filha.
Embora nessa descida aos infernos da realidade só encontre
degradação ao tentar manter
sua imaginação literária.
Todo o problema em "Disgrace" está no embate entre um
ponto de vista adulto e civilizado e uma realidade infantilizada e bárbara. São pólos inconciliáveis. O ponto de vista da
cultura humanista não tem
mais qualquer efeito sobre a
realidade embrutecida. As citações cultas com que costumava
pontuar os fatos de sua vida já
não ensinam nada ao professor. "Ele fala italiano, ele fala
francês, mas o italiano e o francês não vão salvá-lo aqui na escuridão da África."
Paralelamente ao trauma a
que é submetido ao lado da filha, e tentando salvá-la desse
horror, ele tenta sem sucesso
escrever uma ópera sobre
Byron. O paradoxo, nesse caso,
é que a arte parece servir de defesa contra a barbárie, mas sua
sobrevivência (de uma arte
verdadeira) depende mais de
um confronto muitas vezes
violento com essa realidade inculta do que de uma mera reprodução apaziguadora dentro
da história da cultura.
E é isso que o professor termina por compreender na degradação, em um processo que
o faz tornar-se animal, pôr-se
na pele dos cães que ele ajuda a
matar, por caridade, como auxiliar de uma clínica veterinária.
"Não existe vida superior. Esta é a única vida. Que compartilhamos com os animais. (...) É
o exemplo que tento seguir.
Compartilhar parte do nosso
privilégio humano com as bestas", diz a filha. E o pai, ainda
sem perceber que estão falando
a mesma língua, lhe faz eco ao
justificar os atos que o levaram
a ser banido da vida universitária para cair na "vida animal":
"Nenhum animal aceitará a
justiça de ser punido por ter seguido seus instintos".
Avaliação:
Livro: Disgrace
Autor: J.M. Coetzee
Editora: Secker and Warburg
(Inglaterra)
Quanto: R$ 45 (220 págs.)
Onde encomendar: www.bol.co.uk
e www.waterstones.co.uk
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