São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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MÚSICA

Artista carioca lança o CD "Escape" no país, em novembro, com um ano de atraso e após sucesso na Europa e no Japão

Quase estrangeiro, Marcos Valle volta ao Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
ENVIADO ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

Um dos músicos brasileiros mais atuantes das décadas de 60 e 70, o carioca Marcos Valle, 59, reconquista lentamente seu país, após um longo e tácito exílio em que apenas europeus e japoneses deram ouvidos à sua obra.
Seu novo trabalho, "Escape", lançado em 2001 pelo selo inglês Far Out, chega ao Brasil só no início do mês que vem, pela nova distribuidora da Trama. A EMI acaba de relançar o álbum de estréia de um dos pilares da segunda geração da bossa nova, "Samba "Demais'" (64).
A maré ainda não é toda a favor. A EMI já deixa faltar nas lojas o disco recém-lançado e nem cogita, por enquanto, trazer ao Brasil o trabalho feito em 2001 pela filial japonesa da gravadora, de reeditar caprichosamente todos os fenomenais discos que Marcos Valle gravou -no Brasil- entre 1968 e 1974.
Restam à terra natal do bossa-novista alienado que virou músico participante pós-tropicália que virou artífice da frente branca da black music nacional os dois pontos mais distantes de sua história, o mais antigo e o mais recente.
Valle conta ao Brasil indiferente o fenômeno que ele passou a vivenciar desde que passou temporada nos Estados Unidos e se tornou parceiro, em 81, de Leon Ware, artesão da meca negra Motown: "No fim dos anos 80, alguns DJs de Londres perceberam na minha música a possibilidade de sua mistura de balanço, harmonia e improvisação ter um público mais jovem. Hoje minha música entra na Europa junto a esse público, e acabo tocando em festivais de rock".
Às suas costas, na parede de sua casa/estúdio carioca, um pôster da edição 1999 do festival dinamarquês Roskilde mostra que ele não exagera. Lá, seu nome está entre outros como Flaming Lips, Mercury Rev e Placebo.
Aqui, a notícia anterior sobre ele viera no livro "Eu Não Sou Cachorro, Não" (Record), de Paulo César de Araújo. Empenhado em dissolver preconceitos contra a geração brega da MPB dos anos 70 e em relativizar o adesismo da dupla Dom & Ravel ao regime militar, ali o autor contou que Valle fizera, em 1973, um samba em ode aos militares.
"Flamengo Até Morrer", para Araújo, conectava o amor ao time de futebol à eficácia do presidente Médici.
Valle se choca ao saber dessa interpretação: "Essa música era contra o governo! Queríamos dizer que o governo brasileiro tinha que alienar todo mundo para que as coisas parecessem estar bem. O negócio era Brasil e era Flamengo. E a gente terminava assim: "O resto a gente sabe, mas não diz'".
Sua versão parece condizente com uma trajetória de fato, tortuosa, que culmina, em "Escape", em melodias profundas e extremamente serenas como a de "Reality" (cantada docemente em inglês -Valle é também um de "nossos" melhores cantores).
Por volta de 65, se revoltou contra a dissidência politizada da bossa, liderada por Carlos Lyra e Nara Leão, que tachava Tom Jobim e João Gilberto de alienados. Assumiu-se surfista, criticou em "A Resposta" os que cantavam o morro virados para o mar.
Foi patrulhado? "Não fui, mas tive que sair daquele mundo só musical e perceber o que estava acontecendo. Não foi pressão, foi consciência." Veio uma fileira de clássicos engajados: "Viola Enluarada", (68), "Mustang Cor de Sangue" (69), "Esperando o Messias" (70), "Com Mais de 30" (71) e... "Flamengo Até Morrer" (73).
Enquanto quase todos da bossa se viam apanhados pela renovação tropicalista, Valle foi exceção ao se adaptar aos novos rumos. Não virou tropicalista, mas ajudou a cravar no coração da música popular brasileira uma surda invasão negra, que lhe rendeu um ápice de carreira e um dos momentos notáveis da moderna MPB: o álbum "Garra" (71).
Virou hippie típico, mas foi vender sua inédita associação entre samba, jazz e soul na Globo, onde se fez ambíguo de novo ao virar autor principal de trilhas como a novela "Selva de Pedra" (72) e o infantil "Vila Sésamo" (74). "Fui criticado o tempo todo por isso, mas depois todo mundo começou a fazer música para a Globo."
Coincidência ou não, 74 viu iniciar seu primeiro longo ostracismo, quebrado em parte pelo trabalho nos EUA e pela breve volta ao sucesso, ainda nos braços da Globo, com o hit de malhação "Estrelar" (83). O novo sumiço durou mais dez anos, e agora olha ele aí, começando mais uma vez.

Escape


    Artista: Marcos Valle
Lançamento: Far Out
Quanto: R$ 22 (preço sugerido)




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