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RODAPÉ
Harmonias geométricas de um parangolé poético
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Um dos predicados notáveis
de "Rua do Mundo", de Eucanaã Ferraz, é a musicalidade de
seus poemas. Talvez essa impressão seja reforçada pelo fato de ser
ele autor, com Antonio Cicero, de
uma antologia de Vinicius de Moraes (poeta que sempre atuou na
MPB) e organizador de "Letra
Só", livro que reúne as composições de Caetano Veloso (provando, para quem souber ler, que as
letras do cantor baiano podem ser
ouvidas como poesia pura).
Mas a musicalidade a que me
refiro é de outra ordem e nada
tem a ver com o cancioneiro popular. Eucanaã Ferraz imprime a
seus versos uma cadência seca,
em que cortes abruptos fazem reverberar o ritmo pelo efeito de sua
interrupção. Música não-melódica, portanto, que preserva a oralidade da poesia, mas cuja harmonia parece advir das proporções
geométricas -como no poema
"Arranha-céus":
"A água parada/ dos vidros/ (a
sede estanca diante dela,/ de sua
retidão salina).// O fogo parado/
dos vidros/ (chama que não se
exaure,/ agora inteiramente agora).// A água fria,/ o fogo frio/
(sem reverso, dentro é fora)/ das
altas lâminas:// lagos de quartzo/
estendidos ao vento imparcial da
cidade; fogos silenciosos, parados,/ do artifício".
Pode-se ver aqui, em miniatura,
procedimentos recorrentes nesse
livro em que a paisagem urbana é
simultaneamente tema e metáfora: a atenção obsessiva ao mundo
objetivo como modo de disciplinar a expressão, sem contudo deixar de expressar conteúdos que
estão para além daquilo que é descrito; versos que transpõem, para
o âmbito verbal das nomeações, a
estrutura tridimensional da percepção visual (como esses arranha-céus mostrando que "dentro
é fora").
Já que a referência a antecessores literários sempre torna claros
os vetores de uma poética, pode-se dizer que Eucanaã Ferraz não é
um autor experimental, de extração pós-concreta, em que a linguagem tem relação de isomorfismo com a materialidade do que é
representado, ao ponto de dissolver a própria representação.
Seus poemas, ao contrário, utilizam a realidade concreta (no caso, a cidade) como experiência fenomenológica do sujeito que a
contempla, que nela se projeta
-mas que a ela se limita. Nesse
sentido, estão mais próximos da
"lição de poesia" de João Cabral
de Melo Neto e do neoconcretismo.
Em "Rua do Mundo", há remissões explícitas a esses momentos
da literatura e das artes visuais. A
série "A um Toureiro Morto" elege um tema caro a Cabral e "O Cobogó" (tijolo perfurado, usado em
construções rústicas) retoma os
paralelepípedos homônimos do
poema cabralino "Coisas de Cabeceira, Recife". E a aproximação,
igualmente cabralina, entre o
poeta e o arquiteto aparece nos
versos de "Ronchamp (Outra Fábula de um Arquiteto)", homenagem a Le Corbusier: "No cume da
colina,/ como se à mesa da santa
ceia:/ capela-carapaça".
Em outros momentos do livro,
porém, as distinções entre construção e arquiteto, habitáculo e
corpo, são canceladas -como
nos poemas "Issey Miyake" (sobre o estilista japonês) e "Das Covas": "morador e habitação/ um
só metro;// mesma fôrma: fato e
conceito./ Avalia: coisa e palavra/
no mesmo prato".
E em "Uma Coisa Casa", Eucanaã Ferraz parte dos "parangolés"
de Hélio Oiticica para transformar as vestimentas-esculturas do
artista neoconcreto em figuração
da linguagem como pele, do artifício como casa. Apoteose de
"Rua do Mundo", esse poema recapitula o trajeto do autor de
"Martelo" e "Desassombro" (livro que tinha maior dose de lirismo e humor).
Começa com uma série de trocadilhos típicos do poema-piada
modernista -"No início/ era
apenas/ lé com lé/ cré com cré/ e
variações/ disso./ Depois fez-se o
Hélio./ E Hélio,/ seu Parangolé"
("Hélio" sendo também uma referência ao Sol da mitologia grega)- e continua em variações estonteantes, fundindo filosofia e
tropicalismo numa cosmologia
poética atravessada pela ironia:
"O Parangolé/ será de si mesmo/ o sal, a Sé./ Pois que seja a linguagem/ -como quer o filósofo-/ a morada do ser;// mas eu
vos digo,/ em verdade, que/ o Parangolé é a casa do é".
Rua do Mundo
Autor: Eucanaã Ferraz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (128 págs.)
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