|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O pôr-do-sol da freira
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Premiado no Brasil e no estrangeiro, coberto de glórias literárias e sociais, ele chegou à
sua casa e encontrou a filha em
prantos. Dizia-se desgraçada,
queria se matar. Contou o seu
drama: estava ameaçada de levar bomba em português.
Autora das piores redações de
todo o ano letivo, a madre-professora dera a chance: ou fazia
uma composição decente que
redimisse os erros acumulados
durante o ano, ou ficava sem
média para os exames. E ela
-que brilhara em matemática,
que ganhara o prêmio de viagem a Mataripe pela melhor
nota em geografia, que era autoridade em Renascença e em
Guerras Púnicas- sentiu o
gosto da bomba a caminho.
"Uma humilhação!", berrou o
pai no meio da sala. Um homem traduzido em copta, em
servo-croata, editado pelo MacMillan, amigo do García Márquez e do Saramago, patrono
de escolas, nome de biblioteca
no Recife, ter uma filha ameaçada de bomba em redação!
Uma vergonha!
A filha enxugou as lágrimas.
Ferido no orgulho, o pai quebraria o galho. E, para começar, quase quebrou a sopeira
que vinha da cozinha. "Suspendam o jantar! Vou fazer uma
redação para minha filha! Quero ver o que essa freira de..." A
filha gritou: "Papai!". Mas ele
estava possesso: "Quero ver o
que essa freira de merda vai dizer da minha composição!".
Quando o pai atingia o palavrão, é que o negócio estava
preto mesmo. E tão preto estava
que todo mundo começou a pisar na ponta dos pés, em respeito à concentração do chefe da
casa que se trancara no gabinete. Fera enjaulada, ele procurou
se acalmar. No fundo da estante mantinha um pequeno bar.
Desde que o médico o proibira
de beber, ele levara para o sacrário da casa algumas bebidas,
lá imperava sem dar satisfações
a ninguém, principalmente à
mulher, que o controlava com
ferocidade.
Foi lá, escolheu o melhor uísque, que reservava para os
grandes momentos, quando
precisava enfrentar formidáveis desafios. Tomou uma talagada generosa e logo outra para consolidar. Limpou com
energia a mesa, varejou papéis
velhos, abriu o computador.
Mas reconsiderou. Não, nada
com o computador, muito frio e
profissional. Foi nos guardados
e apanhou a caneta de estimação, uma velha Parker rombuda, a mesma com que escrevera
seu maior êxito de venda e crítica. Aquela pena fora elogiada
por William Faulkner e por
John dos Passos.
Só então descobriu que não
sabia sobre o que deveria escrever. Abriu a porta e berrou para
a sala: "Qual é o tema?".
"Pôr-do-sol, papai." Antes de
fechar a porta, descobriu que tinha mais um excelente motivo
para esculhambar com a madre. Ora essa, o mundo mudara, o Muro de Berlim caíra, estávamos às portas do novo milênio, e vinha uma freira anacrônica impor à juventude dos
anos 90 um tema daqueles, de
tempos parnasianos e ultrapassados!
Mesmo assim, não teve alternativa. Separou duas laudas do
melhor papel de seu estoque,
começou a primeira frase, mas
estancou: na parte superior da
lauda estava o seu nome, com o
monograma da Academia de
Letras a que pertencia.
Procurou pelas gavetas, não
encontrou outro tipo de papel,
teve de gritar mais uma vez pela filha, que lhe passou um papel almaço pautado. Havia séculos não escrevia num troço
daqueles. Alisou-o com alguma
raiva, mas teve vontade de
cheirá-lo. Sim, cheirava ainda
como os papéis almaços de antigamente. Tudo aquilo lhe pareceu de bom agouro.
Tacou um pôr-do-sol caprichadíssimo, pleno de tintas sangrentas no horizonte, pássaros
fatigados que se recolhiam antes que as trevas chegassem. Esparramou suspiros de lagos plácidos que anoiteciam. Lembrou-se de todos os pores-do-sol
que vira em velhas folhinhas de
armazém, ressuscitou deslumbramentos de sua infância, inventou uma pradaria, depois
uma charneca, ficou em dúvida: não sabia a diferença entre
uma pradaria e uma charneca,
na verdade, nem sabia ao certo
o que era uma charneca.
Vencendo com destemor estas
e outras dificuldades, em menos
de meia hora as 30 linhas estavam cumpridas. Releu em voz
alta para si mesmo, foi severo
na revisão, substituiu um "profundamente" por um "essencialmente", alterou a regência
de um verbo e deu por limpa e
acabada a prova. Chamou a filha: "Copie com sua letra agora! Vai ser barbada!".
Os eventos da noite trouxeram esquecimento e paz sobre o
assunto. Jantaram, viram um
filme no novo canal da TV a cabo, a filha mais velha, recém-
casada, apareceu na visita de
todas as noites, finalmente foram dormir.
O homem acordou ao meio-
dia, com outro bode armado na
sala de baixo. Sob as cobertas,
distinguia o choro da filha e as
vozes abafadas que a consolavam. Desceu de pijama mesmo.
"O que está havendo nesta casa?"
A filha correu para ele, os braços abertos: "Papai, a freira deu
bomba no senhor! Quatro!".
E o pai, traduzido em servo-
croata, editado pelo MacMillan, amigo do García Márquez
e do Saramago, deu um uivo.
Rolou pela escada, espumando
contra a freira e contra o pôr-
do-sol.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|