São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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MEMÓRIA

Cantora era a maior voz feminina do Brasil


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Até ontem, ela era a maior voz feminina viva do Brasil. Desde o finalzinho do mesmo dia de ontem -que ano é este de 2001, que não acaba nunca?-, entrou para a galeria notável de vanguardistas que abandonam a luta cedo demais, por razões provavelmente imbecis.
O papo de "maior voz feminina" parece balela para homenagear, sob alto impacto, quem acabou de morrer. Não é o caso, desta vez. Quem está ligado na cena sabe muito bem que não havia páreo para Cássia Eller. Marisa Monte, a mais equipada para lhe fazer sombra (e que de fato fazia, se pensarmos em termos comerciais), no conjunto ficava léguas atrás de Cássia, por ser mais calculista, menos confessional, mais matemática, menos artista. Bethânia, Gal, Elza e divas antigas assim não teriam como ter, para a longa década de 2000, um centésimo da importância que Cássia nem começara a ter.
Porque ela foi, no curto tempo que aqui passou, conjugação explosiva de uma voz trovejante; de um senso raro de interpretação; de um conhecimento musical tão gigante quanto intuitivo; de uma personalidade aparentemente tímida e retraída, mas eloquente demais quando em cima de um palco; não só isso, mas muitas coisas ainda. Ela tinha que ficar, não podia ir embora.
Mesmo só gozando de pleno reconhecimento comercial há pouco -por causa do "Acústico MTV"-, Cássia foi a dona dos rápidos anos 90, essa década tão desgraçada pelo achatamento que a grana e o imediatismo impuseram à gana, ao talento, à arte. Não é por falta de simbolismo que Chico Science, outra das jovens esperanças musicais brasileiras, morreu nesses mesmos e hoje dolorosamente asquerosos anos 90.
Não há que questionar a trajetória pessoal de Cássia. Ela passou boa parte de sua história pública -iniciada em disco em 1990, após muita e muita e muita labuta por baixo dos panos da nossa indústria do disco- se enclausurando nas canções de dois de seus ídolos, Renato Russo e Cazuza. Se havia algo em Cássia que os procurava, mesmo morbidamente, não nos compete julgar. A dor, a imensa dor, é porque ela era a ilusão de ser uma de nossas tábuas de salvação, num país apodrecido por nomes que seria desrespeitoso citar por aqui.
Se ela fechará um triângulo de dor com dois de seus ídolos mortos precocemente, já nem é mais de nossa conta. O fato é que Cássia teve outros, muitos outros, dezenas o centenas de outros ídolos.
Desde 90, ela abrilhantou, mesmo quando se equivocava, canções velhas ou inéditas de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Luiz Melodia, Ataulfo Alves, Djavan, Rita Lee, Lennon & McCartney, Jimi Hendrix, Gilberto Gil, Raul Seixas, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lobão, Tião Carvalho, Riachão, Nando Reis, Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Mutantes, Nação Zumbi, RPM etc. etc. etc. Sempre lhes acrescentava uma nova miragem, algum novo preceito, qualquer nova cor.
Sua jovem carreira de estrela já pendurava problemas, é verdade. Notada (com total justiça) como animal fogoso de palco, passou a ser instada a gravar cada vez mais discos ao vivo. Entrou no círculo vicioso da rentabilidade com sua gravadora, a voraz Universal, que vê aqui mais uma de suas apostas se desfazendo em tristes cinzas.
O investimento parece perdido também porque Cássia, no apetite de sua gravadora pela redundância, deixou menos variedade do que o troncudo potencial faria supor. Só a mais famosa canção de seu repertório, "Malandragem" (de Cazuza e Frejat), ela gravou três vezes em seis anos. Era jovem demais para tamanha redundância, e essas coisas afinal também podem fazer mal à saúde.
"Malandragem" ficou massificada demais, mas há de ser por seus versos cândidos ("quem sabe eu ainda sou uma garotinha/ esperando o ônibus da escola") que Cássia Eller será para sempre lembrada. Talvez com esse mesmo hino ela dance no éter, com Dolores Duran, Elis Regina e Clara Nunes, a ciranda da juventude perdida. Não, Deus não é brasileiro.


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