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MEMÓRIA
Cantora era a maior voz feminina do Brasil
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Até ontem, ela era a maior voz
feminina viva do Brasil. Desde o
finalzinho do mesmo dia de ontem -que ano é este de 2001, que
não acaba nunca?-, entrou para
a galeria notável de vanguardistas
que abandonam a luta cedo demais, por razões provavelmente
imbecis.
O papo de "maior voz feminina"
parece balela para homenagear,
sob alto impacto, quem acabou de
morrer. Não é o caso, desta vez.
Quem está ligado na cena sabe
muito bem que não havia páreo
para Cássia Eller. Marisa Monte, a
mais equipada para lhe fazer
sombra (e que de fato fazia, se
pensarmos em termos comerciais), no conjunto ficava léguas
atrás de Cássia, por ser mais calculista, menos confessional, mais
matemática, menos artista. Bethânia, Gal, Elza e divas antigas
assim não teriam como ter, para a
longa década de 2000, um centésimo da importância que Cássia
nem começara a ter.
Porque ela foi, no curto tempo
que aqui passou, conjugação explosiva de uma voz trovejante; de
um senso raro de interpretação;
de um conhecimento musical tão
gigante quanto intuitivo; de uma
personalidade aparentemente tímida e retraída, mas eloquente
demais quando em cima de um
palco; não só isso, mas muitas coisas ainda. Ela tinha que ficar, não
podia ir embora.
Mesmo só gozando de pleno reconhecimento comercial há pouco -por causa do "Acústico
MTV"-, Cássia foi a dona dos rápidos anos 90, essa década tão
desgraçada pelo achatamento que
a grana e o imediatismo impuseram à gana, ao talento, à arte. Não
é por falta de simbolismo que
Chico Science, outra das jovens
esperanças musicais brasileiras,
morreu nesses mesmos e hoje dolorosamente asquerosos anos 90.
Não há que questionar a trajetória pessoal de Cássia. Ela passou
boa parte de sua história pública
-iniciada em disco em 1990,
após muita e muita e muita labuta
por baixo dos panos da nossa indústria do disco- se enclausurando nas canções de dois de seus
ídolos, Renato Russo e Cazuza. Se
havia algo em Cássia que os procurava, mesmo morbidamente,
não nos compete julgar. A dor, a
imensa dor, é porque ela era a ilusão de ser uma de nossas tábuas
de salvação, num país apodrecido
por nomes que seria desrespeitoso citar por aqui.
Se ela fechará um triângulo de
dor com dois de seus ídolos mortos precocemente, já nem é mais
de nossa conta. O fato é que Cássia teve outros, muitos outros, dezenas o centenas de outros ídolos.
Desde 90, ela abrilhantou, mesmo quando se equivocava, canções velhas ou inéditas de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Luiz
Melodia, Ataulfo Alves, Djavan,
Rita Lee, Lennon & McCartney,
Jimi Hendrix, Gilberto Gil, Raul
Seixas, Chico Buarque, Caetano
Veloso, Lobão, Tião Carvalho,
Riachão, Nando Reis, Arnaldo
Antunes, Carlinhos Brown, Mutantes, Nação Zumbi, RPM etc.
etc. etc. Sempre lhes acrescentava
uma nova miragem, algum novo
preceito, qualquer nova cor.
Sua jovem carreira de estrela já
pendurava problemas, é verdade.
Notada (com total justiça) como
animal fogoso de palco, passou a
ser instada a gravar cada vez mais
discos ao vivo. Entrou no círculo
vicioso da rentabilidade com sua
gravadora, a voraz Universal, que
vê aqui mais uma de suas apostas
se desfazendo em tristes cinzas.
O investimento parece perdido
também porque Cássia, no apetite
de sua gravadora pela redundância, deixou menos variedade do
que o troncudo potencial faria supor. Só a mais famosa canção de
seu repertório, "Malandragem"
(de Cazuza e Frejat), ela gravou
três vezes em seis anos. Era jovem
demais para tamanha redundância, e essas coisas afinal também
podem fazer mal à saúde.
"Malandragem" ficou massificada demais, mas há de ser por seus
versos cândidos ("quem sabe eu
ainda sou uma garotinha/ esperando o ônibus da escola") que
Cássia Eller será para sempre lembrada. Talvez com esse mesmo hino ela dance no éter, com Dolores
Duran, Elis Regina e Clara Nunes,
a ciranda da juventude perdida.
Não, Deus não é brasileiro.
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