São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

"MALÍCIA NEGRA"

Corrosivo, Waugh ironiza seu tempo

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Evelyn Waugh (1903-1966) foi um expoente da literatura satírica da primeira metade do século 20, período de apogeu do gênero, especialmente na Inglaterra. O típico senso de humor britânico, cheio de ironia ferina, é explorado aos limites máximos em seus romances.
Felizmente, os autores daquela época foram poupados do patrulhamento dos mantenedores da ordem politicamente correta. Waugh talvez não tivesse sobrevivido a ela. Seu sarcasmo cortante não deixava escapar ninguém: aristocratas e vagabundos, imperialistas e colonizados, homens e mulheres, todos eram alvo de sua graça impiedosa.
"Malícia Negra" (1932) ridiculariza as elites africanas de um modo que esta passagem de século poderia considerar insultantemente preconceituoso. Mas a mordacidade cruel de Waugh não se restringe aos negros, é democraticamente espalhada entre todas as muitas etnias e classes sociais que convivem no ambiente fictício.
Seth, o imperador da Azânia (provavelmente inspirado em Hailé Selassié, o imperador da Etiópia, que havia sido coroado com grande pompa no início da década) é ridicularizado tanto quanto seu conselheiro inglês Basil Seal.
Os esforços da dupla para transformar a ilha numa reprodução dos modelos políticos e culturais considerados ideais nas escolas britânicas onde ambos estudaram são pateticamente hilários e impressionantemente atuais: lembram o que a Doutrina Bush diz pretender realizar no Iraque e no Afeganistão.
O leitor contemporâneo não deixa de se divertir com as estocadas que Waugh desfere contra personagens que são arquétipos de tipos ainda muito em voga, como as damas inglesas defensoras dos direitos dos animais que vão a Azânia para vigiar o tratamento dado aos bichos numa sociedade de canibais. Ou o religioso que trata com condescendência humilhante as ovelhas de seu rebanho, que ele talvez sinceramente acredite amar mas, de verdade, despreza.
Ninguém é nobre (no sentido espiritual, não de nobiliarquia) neste livro. Como o inferno, ele está cheio de boas intenções. Waugh não tem a mínima intenção de ser pedagógico, filantropo, construtor. Talvez por isso ele seja tão deliciosamente engraçado, na linha de Oscar Wilde, George Bernard Shaw, os fundadores da tradição sarcástica da ficção britânica.
Filho de uma família de classe média, Waugh estudou em Sussex e Oxford, teve uma formação literária extremamente refinada, mas surpreendeu-se com a brutalidade dominante nas relações entre os estudantes daquelas escolas, onde foi vítima de muitas agressões físicas e morais que, segundo alguns biógrafos, forjaram a crueldade com que ele viria a descrever o comportamento humano na sua produção literária.
A angústia existencial, que o levou até a uma tentativa de suicídio, foi aparentemente mitigada pelo trabalho de escrever. As caricaturas cruentas dos jovens da elite londrina feitas em "Vile Bodies", o segundo romance, foram sua melhor vingança contra os que o haviam atormentado antes.
Waugh foi repórter e viajou muito pela África, fonte de inspiração de vários livros, entre eles "O Furo", que deveria ser material obrigatório de leitura em todo curso de jornalismo, pela crítica arrasadora que ele faz da atividade, com a verve habitual.
Depois de ter se voluntariado para lutar na Segunda Guerra Mundial, Waugh deixou de escrever com a graça que caracterizara sua produção anterior ao conflito. Foi quando obteve mais sucesso junto ao público, em especial graças a "Memórias de Brideshead", que no entanto não chega aos pés de "Malícia Negra" e "O Furo" em originalidade e em poder de instigar o pensamento.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"

Malícia Negra
   
Autor: Evelyn Waugh
Editora: Globo
Quanto: R$ 33 (270 págs.)



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