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LIVRO/LANÇAMENTO
"MALÍCIA NEGRA"
Corrosivo, Waugh ironiza seu tempo
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Evelyn Waugh (1903-1966)
foi um expoente da literatura
satírica da primeira metade do século 20, período de apogeu do gênero, especialmente na Inglaterra.
O típico senso de humor britânico, cheio de ironia ferina, é explorado aos limites máximos em seus
romances.
Felizmente, os autores daquela
época foram poupados do patrulhamento dos mantenedores da
ordem politicamente correta.
Waugh talvez não tivesse sobrevivido a ela. Seu sarcasmo cortante
não deixava escapar ninguém:
aristocratas e vagabundos, imperialistas e colonizados, homens e
mulheres, todos eram alvo de sua
graça impiedosa.
"Malícia Negra" (1932) ridiculariza as elites africanas de um modo que esta passagem de século
poderia considerar insultantemente preconceituoso. Mas a
mordacidade cruel de Waugh não
se restringe aos negros, é democraticamente espalhada entre todas as muitas etnias e classes sociais que convivem no ambiente
fictício.
Seth, o imperador da Azânia
(provavelmente inspirado em
Hailé Selassié, o imperador da
Etiópia, que havia sido coroado
com grande pompa no início da
década) é ridicularizado tanto
quanto seu conselheiro inglês Basil Seal.
Os esforços da dupla para transformar a ilha numa reprodução
dos modelos políticos e culturais
considerados ideais nas escolas
britânicas onde ambos estudaram
são pateticamente hilários e impressionantemente atuais: lembram o que a Doutrina Bush diz
pretender realizar no Iraque e no
Afeganistão.
O leitor contemporâneo não
deixa de se divertir com as estocadas que Waugh desfere contra
personagens que são arquétipos
de tipos ainda muito em voga, como as damas inglesas defensoras
dos direitos dos animais que vão a
Azânia para vigiar o tratamento
dado aos bichos numa sociedade
de canibais. Ou o religioso que
trata com condescendência humilhante as ovelhas de seu rebanho, que ele talvez sinceramente
acredite amar mas, de verdade,
despreza.
Ninguém é nobre (no sentido
espiritual, não de nobiliarquia)
neste livro. Como o inferno, ele
está cheio de boas intenções.
Waugh não tem a mínima intenção de ser pedagógico, filantropo,
construtor. Talvez por isso ele seja
tão deliciosamente engraçado, na
linha de Oscar Wilde, George Bernard Shaw, os fundadores da tradição sarcástica da ficção britânica.
Filho de uma família de classe
média, Waugh estudou em Sussex e Oxford, teve uma formação
literária extremamente refinada,
mas surpreendeu-se com a brutalidade dominante nas relações entre os estudantes daquelas escolas, onde foi vítima de muitas
agressões físicas e morais que, segundo alguns biógrafos, forjaram
a crueldade com que ele viria a
descrever o comportamento humano na sua produção literária.
A angústia existencial, que o levou até a uma tentativa de suicídio, foi aparentemente mitigada
pelo trabalho de escrever. As caricaturas cruentas dos jovens da elite londrina feitas em "Vile Bodies", o segundo romance, foram
sua melhor vingança contra os
que o haviam atormentado antes.
Waugh foi repórter e viajou
muito pela África, fonte de inspiração de vários livros, entre eles
"O Furo", que deveria ser material
obrigatório de leitura em todo
curso de jornalismo, pela crítica
arrasadora que ele faz da atividade, com a verve habitual.
Depois de ter se voluntariado
para lutar na Segunda Guerra
Mundial, Waugh deixou de escrever com a graça que caracterizara
sua produção anterior ao conflito.
Foi quando obteve mais sucesso
junto ao público, em especial graças a "Memórias de Brideshead",
que no entanto não chega aos pés
de "Malícia Negra" e "O Furo" em
originalidade e em poder de instigar o pensamento.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"
Malícia Negra
Autor: Evelyn Waugh
Editora: Globo
Quanto: R$ 33 (270 págs.)
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