São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 2009

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LIVROS

Crítica/"O Bom Soldado"

Tom vulgar prejudica romance inglês

Considerado um livro pioneiro do modernismo britânico, "O Bom Soldado", de Ford Madox Ford, exagera no vaivém no tempo

RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Tenho consciência de que contei esta história de um jeito muito desconexo", se desculpa o narrador de "O Bom Soldado", romance que o inglês Ford Madox Ford publicou em 1915.
A desculpa não passa de uma desconversa, palavra que, de resto, serve para definir o tom geral do livro. Pois, nessa história de infidelidades matrimoniais em série, as dissimulações são tão inerentes às ações e às palavras dos personagens que se tornam também constituintes da composição do romance. Por outro lado, o incessante vaivém no tempo e no foco narrativo serve para prender a atenção do leitor, criar um suspense que não deixa de ter o seu toque de vulgaridade.
Volta e meia, o narrador avisa que revelações trágicas esperam o leitor, adiante. Tais revelações só chegam a conta-gotas, ao passo que o cômputo final dessa "tragédia" -palavra repetida pelo narrador- alcança a cifra de dois suicídios, um infarto letal e uma jovem que enlouquece, sem falar de outras desgraças a varejo.

Pioneirismo duvidoso
Vale a pena frisar isso, pois "O Bom Soldado" tem a reputação de obra pioneira do modernismo inglês, cujo mérito residiria justamente nas potencialidades dessa composição. Pode até ser, no que tange a reputações e honrarias de catálogo. Porém o que o livro sugere é que, em literatura, uma técnica não anda sozinha: seu fundo, sua relevância, deriva da presença de uma visão crítica, a qual independe de uma técnica.
A história de enganos é contada por um marido enganado, tempos depois de uns morrerem e outros enlouquecerem. O núcleo é formado por dois casais ricos: um inglês e o outro americano, mas também com aspirações e antepassados britânicos. Todos eram tão ricos e de famílias tão tradicionais que viviam numa espécie de bolha: sentados em seus salões ou em hotéis de luxo, "parecia não haver mais nada no mundo".
Mas havia. Na época, a Inglaterra era sede de um império colonial que dominava um terço da humanidade (se incluirmos a China, que não era colônia, mas tinha um governo submisso às armas e à política inglesas).
Assim, a fim de refazer sua fortuna, abalada pela jogatina e pelos esbanjamentos do marido (um oficial do Exército, o bom soldado do título), o casal inglês pode passar alguns anos na Birmânia e na Índia, onde "a vida é muito econômica".
Assim, também, numa conversa entre dois oficiais sobre a África, o narrador capta de passagem as palavras "Dane-se o humanitarismo". Noutro trecho, se menciona a alteração dos planos de certa família por causa do "início da Guerra Sul-Africana".
São palavras ditas por alto, sem deixar marcas no livro. A indicação da hipocrisia e da manipulação que rege o âmbito doméstico da vida dos personagens de "O Bom Soldado" poderia ter mais alcance se o livro permitisse relacionar esse traço moral àqueles vislumbres da dominação colonial.
Tal via não existe, e o "jeito muito desconexo" de narrar não ajuda grande coisa. Põe mais ênfase ainda na mera revelação de segredos chocantes e de um desfecho sangrento, que virá na página devida.


RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" e "Barco a Seco" (Companhia das Letras)

O BOM SOLDADO
Autor: Ford Madox Ford
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Alfaguara/Objetiva
Quanto: R$ 34,90 (240 págs.)
Avaliação: regular


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