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LIVROS
Crítica/"O Bom Soldado"
Tom vulgar prejudica romance inglês
Considerado um livro pioneiro do modernismo britânico, "O Bom Soldado", de Ford Madox Ford, exagera no vaivém no tempo
RUBENS FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Tenho consciência
de que contei esta
história de um jeito
muito desconexo", se desculpa
o narrador de "O Bom Soldado", romance que o inglês Ford
Madox Ford publicou em 1915.
A desculpa não passa de uma
desconversa, palavra que, de
resto, serve para definir o tom
geral do livro. Pois, nessa história de infidelidades matrimoniais em série, as dissimulações
são tão inerentes às ações e às
palavras dos personagens que
se tornam também constituintes da composição do romance.
Por outro lado, o incessante
vaivém no tempo e no foco narrativo serve para prender a
atenção do leitor, criar um suspense que não deixa de ter o seu
toque de vulgaridade.
Volta e meia, o narrador avisa
que revelações trágicas esperam o leitor, adiante. Tais revelações só chegam a conta-gotas,
ao passo que o cômputo final
dessa "tragédia" -palavra repetida pelo narrador- alcança
a cifra de dois suicídios, um infarto letal e uma jovem que
enlouquece, sem falar de outras
desgraças a varejo.
Pioneirismo duvidoso
Vale a pena frisar isso, pois
"O Bom Soldado" tem a reputação de obra pioneira do modernismo inglês, cujo mérito residiria justamente nas potencialidades dessa composição. Pode até ser, no que tange a reputações e honrarias de catálogo.
Porém o que o livro sugere é
que, em literatura, uma técnica
não anda sozinha: seu fundo,
sua relevância, deriva da presença de uma visão crítica, a
qual independe de uma técnica.
A história de enganos é contada por um marido enganado,
tempos depois de uns morrerem e outros enlouquecerem. O
núcleo é formado por dois casais ricos: um inglês e o outro
americano, mas também com
aspirações e antepassados britânicos. Todos eram tão ricos e
de famílias tão tradicionais que
viviam numa espécie de bolha:
sentados em seus salões ou em
hotéis de luxo, "parecia não haver mais nada no mundo".
Mas havia. Na época, a Inglaterra era sede de um império
colonial que dominava um terço da humanidade (se incluirmos a China, que não era
colônia, mas tinha um governo
submisso às armas e à política
inglesas).
Assim, a fim de refazer sua
fortuna, abalada pela jogatina e
pelos esbanjamentos do marido (um oficial do Exército, o
bom soldado do título), o casal
inglês pode passar alguns anos
na Birmânia e na Índia, onde "a
vida é muito econômica".
Assim, também, numa conversa entre dois oficiais sobre a
África, o narrador capta de passagem as palavras "Dane-se o
humanitarismo". Noutro trecho, se menciona a alteração
dos planos de certa família por
causa do "início da Guerra Sul-Africana".
São palavras ditas por alto,
sem deixar marcas no livro. A
indicação da hipocrisia e da
manipulação que rege o âmbito
doméstico da vida dos personagens de "O Bom Soldado" poderia ter mais alcance se o livro
permitisse relacionar esse traço moral àqueles vislumbres da
dominação colonial.
Tal via não existe, e o "jeito
muito desconexo" de narrar
não ajuda grande coisa. Põe
mais ênfase ainda na mera revelação de segredos chocantes
e de um desfecho sangrento,
que virá na página devida.
RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" e "Barco a Seco" (Companhia das Letras)
O BOM SOLDADO
Autor: Ford Madox Ford
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Alfaguara/Objetiva
Quanto: R$ 34,90 (240 págs.)
Avaliação: regular
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