São Paulo, sábado, 31 de janeiro de 1998

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Richard Ford narra o épico das vidas ordinárias na América

Em "Independência", seu quinto romance, o escritor transforma a viagem de um pai e seu filho, em pleno feriado de 4 de julho, num mergulho no coração dos EUA

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

"Independência", o quinto romance do escritor norte-americano Richard Ford, 53, conseguiu uma proeza inédita, vencendo em 1996 os dois principais prêmios literários dos EUA, o Pulitzer e o PEN/Faulkner Award. Depois de vender 400 mil exemplares no mercado americano e ser traduzido para 20 idiomas, o livro chega agora ao Brasil, pela editora Record (leia abaixo). Nele, Ford retoma o personagem Frank Bascombe, protagonista de "O Cronista Esportivo" (1986). Transformado agora em corretor de imóveis, Bascombe aproveita o feriado do Dia da Independência para uma conturbada e reveladora viagem com seu filho-problema adolescente, Paul. Ford concedeu esta entrevista à

Folha por telefone, de Chicago.

Folha - Por que o sr. resolveu fazer Frank Bascombe virar corretor de imóveis? O sr. acha que esse é um ponto privilegiado de observação das mudanças sociais nos EUA?
Richard Ford -
Não me dei conta disso no começo. Só pensava que, num sentido muito prático, tinha de dar-lhe uma nova profissão, no novo livro. E eu sabia bastante a respeito de imóveis.
Só depois que comecei a escrever sobre Frank nessas novas circunstâncias percebi que era um meio formidável de ter acesso às preocupações dos americanos.
Folha - O sr. chegou a trabalhar no ramo de imóveis?
Ford -
Não, mas tenho vivido pelo país inteiro. Mudei de casa muitas vezes. Comprei algumas, vendi outras. Isso acabou me familiarizando com o assunto.
Folha - O romance é ambientado em 1988. O sr. fez algum tipo de pesquisa para recuperar os fatos e o espírito daquela época?
Ford -
Um pouco. Ambientei o livro em 1988 por ser um ano eleitoral. Para me familiarizar com o que ocorria na época, reli o que noticiaram o "Times" de Londres e principalmente o "The New York Times" naquele ano.
Mas as interpretações sobre os fatos e sobre o clima geral da época eu tirei da minha cabeça.
Folha - O sr. não tem filhos. No entanto, o retrato que faz da relação pai-filho é muito convincente e tocante. Como chegou a isso?
Ford -
Não tenho filhos e certamente não terei, mas sou muito simpático ao vínculo entre pais e filhos.
Acho que a maioria dos assuntos sobre os quais escrevi com alguma eficácia são assuntos pelos quais tenho simpatia.
Quando você tem simpatia por alguma coisa, sua curiosidade leva você mais longe. Além disso, como todo ser humano, tenho a experiência das minhas próprias relações com meus pais. No fundo, não é muito difícil inventar um relacionamento pai-filho.
Folha - Frank Bascombe, assim como o sr., nasceu no Mississippi em 1944 e começou a carreira escrevendo livros. Ele é o que o sr. poderia ter sido se não tivesse seguido a carreira literária?
Ford -
Não posso responder que não. Quem pode dizer o que faria, se não tivesse feito o que fez? Ao escrever sobre Frank Bascombe, nunca me vi escrevendo sobre mim mesmo. Tudo o que eu imaginava tinha apenas uma motivação literária.
Quando a vida de alguém sofre mudanças radicais, o interessante é que essa vida pode assumir direções completamente inesperadas. Para mim, o importante é que o livro inclua esse tipo de informação, e não que fale sobre mim, ou potencialmente sobre mim. O importante é que a vida é totalmente surpreendente e imprevisível.
Folha - Em política, Bascombe é um homem de esquerda que vota nos democratas, mas é cético com relação aos políticos democratas. O sr. também é assim? Que pensa, por exemplo, de Bill Clinton?
Ford -
Apóio o presidente Clinton. Votei nele nas duas eleições e acho que ele representa as aspirações da minha geração de americanos.
Acho que, quaisquer que sejam suas falhas, são falhas nossas também. Tenho grande simpatia por ele, e um bocado de paciência. Acho que, se ele comete erros, seus erros são exagerados por causa da posição que ocupa.
Folha - O sr. não acha que isso está acontecendo agora, com essas acusações de assédio sexual?
Ford -
Certamente. Ele está sendo assassinado em público. Acho que existe um notável enfado da população americana diante do nosso governo. Os americanos não estão muito interessados no governo em si.
Então, o que parece é que todo mundo quer participar de uma versão de telenovela de uma crise política, de um modo muito irresponsável.
Folha - Em seus livros, principalmente em "Independência", parece não haver propriamente personagens secundários, uma vez que cada indivíduo, em algum momento, assume o primeiro plano na história...
Ford -
Você tem razão em parte. Penso que, se vou colocar um personagem num livro, tenho de colocá-lo de uma maneira que lhe permita revelar seu mundo moral.
Acho que, em termos formais, existem personagens principais e secundários, mas acredito, de fato, que não deve haver personagens subordinados, que sejam mero suporte para outros.
Acho, aliás, que é mais ou menos assim que devemos tratar os outros seres humanos. Quando conhecemos uma pessoa, não a relegamos de cara a uma posição de não-importância.
Folha - Quando o sr. começa a escrever um livro está tudo planejado ou algumas coisas o surpreendem durante a escrita?
Ford -
Sou frequentemente surpreendido pelas mudanças de direção da história. Posso dar-lhe um exemplo, referente a "Independência".
Eu sabia que, perto do final do livro, deveria acontecer algo bastante dramático, que fizesse mudar a relação entre Frank e seu filho Paul. Tinha que ser um evento importante, e eu não sabia que evento seria esse até o momento em que o escrevi.
Quando descrevi, umas 25 páginas antes, aquela máquina que atira bolas de beisebol para as pessoas rebaterem, pensei que aquela era uma informação que poderia usar mais tarde -e acabei usando no clímax dramático.
Folha - Existe a possibilidade de "Independência" virar filme?
Ford -
Acho que não. O livro é literário demais. A ação é muito interior. Não há bombas explodindo, ninguém sendo assassinado.
Folha - Se o sr. pudesse escolher um diretor para filmar o livro, quem escolheria?
Ford -
Não presto muita atenção ao cinema. Só gostaria que não fosse Quentin Tarantino, por favor (risos).
Folha - Frank Bascombe pode se tornar o protagonista de uma série de romances, como o "Rabbit" de John Updike?
Ford -
Acho que ele pode ser o personagem de só mais um livro. Sou um escritor de um livro de cada vez. Não projeto séries. Pensar muito à frente me desconcentra.



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