São Paulo, segunda, 31 de março de 1997.

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Parabéns para o orgasmo nesta data querida

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Era um casarão na rua Alice. O senhorio, pintor e poeta, construiu dois andares no fundo, onde tinha meu espaço, com vista para o Cristo e o Pão de Açúcar. Na casa, uma clínica reichiana e um velho Corcel branco, indicando que os terapeutas até poderiam estar se divertindo, mas não viam a cor do dinheiro.
Cem metros, um pouco antes da curva, a mansão cor-de-rosa, com patos e galinhas no quintal: o famoso rendez-vous da rua Alice, onde, segundo a lenda, iam se prostituir meninas com uniforme de normalista.
Teoria e prática eram vizinhos e talvez nem se dessem conta um do outro. Mas se houvesse uma utopia do tipo orgasmo num só país, creio que esse país começaria ali na sinuosa curva da Alice.
A clínica era reichiana, mas não seguiu o seu guru até as teses loucas dos últimos dias. Não se montavam engenhocas para medir orgasmo, pois pelo menos isso se sabia: o orgasmo era alegre, selvagem, incapaz de ser domado estatisticamente, já que desafiava controles marciais, religiosos. Como dizia o poeta, era uma flor que nasce no asfalto.
Onde é que fomos atropelados e tudo pareceu, de repente, tão empoeirado como o velho Corcel branco, parado na porta? Centenas de terapias caíram sobre o corpo, da aura à íris, dos florais às plantas dos pés, antiginástica, kundalini, massagearam até os ossos.
Vieram os instrumentos: cronômetros, bicicletas ergométricas, o chão tinto de faixas, indicando metros, quilômetros a serem percorridos em horas, minutos, segundos, frações de segundo. A eficácia da produção teceu uma nova couraça.
Deixou-nos aqui, com um cinto de castidade, enquanto lá havia a guerra contra os radicais livres, mourooxidantes e colateurois.
Colateurols.
Sem falar do vírus que nos atercolateurois.
Sem falar do vírus que nos atecolateurols.
Sem fcolateurols.
Sem colateurois.
Sem falar do vírus que nos aterrocolateurols.
Sem falar do vírus que nos acolateurois.
Colateurols.
Sem falar do vírus qcolateurois.
Sem falar do vírus que nos aterrcolateurois.
Sem falar do vírus que nos acolcolateurols.
Sem falar do vírus que nocolateurols.
Sem falar do vírus que nos aterrocolateurols.
Sem falar do vírus colateurols.
Sem falar do vírus que nos aterroriza colateurois.
Sem falar do vírus que nos atercolaterouis.
Sem falar do Genoma que vai mapear todo o mapa genético e consumir US$ 3 bilhões revelam que há um longo debate sobre as consequências e vantagens dessa aventura científica.
Antony Guiddens ("Beyond Left and Right") lembra bem que quase todos ocidentais hoje -os que ultrapassaram a linha da pobreza- fazem alguma espécie de dieta. Não para emagrecer, mas para manter a saúde diante de uma infinidade de informações sobre alimentos e sua repercussão.
Ele mesmo lembra que a ecotoxicidade, atacando-nos diariamente, aos pouquinhos, é como a posse do corpo por centenas de milhares de formigas, que, no princípio, apenas se fazem sentir, mas com o tempo acabam nos derrubando.
O corpo escapou do nosso terapeuta do bairro, do japonês que recoloca nossa coluna na posição correta, da leitora de tarô com suas saias compridas. Poderosas indústrias, entre elas a de biotecnologia, desenham nossas formas, do músculo das coxas à predisposição ao infarto.
Mais do que nunca o orgasmo, com seu poder subversivo, precisa balançar nossas ancas biônicas, eletrizar silicones, próteses de acrílico. O desastre já aconteceu. Saudemos o orgasmo com um parabéns para você. Além do mais, ainda é a melhor forma de despistar os vizinhos.
Os cem anos de Wilhem Reich são um bom ponto de partida para um debate sobre o corpo que já não é mais (aliás, quando foi?) natural e implica uma incessante negociação de sua vida no contexto de informações, medos e descobertas científicas. Ando muito ocupado, posso contribuir com um título para esse gigantesco balanço teórico: foi bom pra você?

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