São Paulo, sexta-feira, 31 de março de 2000


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CRÍTICA
Filme busca Rio perdido

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema


O escritório do advogado Pedro Paulo (Antonio Fagundes) tem uma enorme janela de vidro, de onde se vê uma belíssima paisagem do Rio de Janeiro.
Quem não conhece bem o Rio não consegue situar com mais precisão essa paisagem.
Com a mesma generosidade com que coloca sua câmera voltada para ela, em "Bossa Nova" Bruno Barreto evita mostrar o exterior do prédio e a rua, como se tentasse evitar o contágio de uma pela outra.
Essa assepsia talvez seja o cerne de "Bossa Nova". Não é uma assepsia que discrimina ricos e pobres, "gente direita" e bandidos. É o presente que "Bossa Nova" trabalha para manter excluído.
O que Barreto se empenha em mostrar não é um Rio "real", mas uma cidade que existe em sua memória e em seus sonhos. O Rio da bossa nova, de relações pessoais afetuosas e atmosfera suave.
Nesse sentido, o passadismo é a característica fundadora do projeto, e podemos deduzi-lo da maneira como o filme opõe o jeito sutil com que o alfaiate Roberto (Pedro Cardoso) paquera Sharon (Giovanna Antonelli), uma estagiária de direito, aos novos modos dominantes, representados pelo jogador de futebol Acácio (Alexandre Borges). Da mesma forma, entre o rock e a cançoneta francesa, Barreto tomará partido da segunda.
A intriga tem como centro os amores de Pedro Paulo, advogado quarentão que, após ser largado pela mulher (Débora Bloch), conhece a norte-americana miss Simpson (Amy Irving). A paquera, o encontro e os mal-entendidos que se seguem criarão o humor e o romance do filme.
Paralelamente, acompanhamos outro triângulo amoroso (envolvendo Roberto, Sharon e o futebolista) e um caso de amor via Internet entre outro americano, Trevor (Stephen Tobolovsky), e uma jovem brasileira, Nadine (Drica Moraes). Caso que, o tempo mostrará, também afirmará um triunfo do amor romântico sobre o presente tecnológico.
Desde que voltou ao Brasil, para filmar "O Que É Isso, Companheiro?", Barreto passou a olhar o Rio de Janeiro com carinho especial.
Tão especial que de certa forma arruinou seu projeto, ao usar a guerrilha do fim dos anos 60 para um projeto de ampla conciliação entre passado e presente -que não cabia, no caso, e determinou as adulterações que levaram os ex-militantes de esquerda a chiar, não sem razão.
Nesse sentido, "Bossa Nova" é muito mais bem-sucedido, na medida em que a evocação do amor romântico vai ao encontro da personalidade do diretor, desde sempre mais propenso a aparar arestas do que a expor feridas, a cultivar harmonias do que contradições.
É preciso assinalar, no entanto, que a leveza do filme (bem de acordo com o grafismo dos créditos de abertura) não deve muito nem a François Truffaut -a quem o filme é dedicado-, nem a Howard Hawks -de quem toma emprestada a sequência final de "Os Homens Preferem as Loiras".
Truffaut também era um cineasta da leveza, mas seu cinema pregava a modernização e americanização do cinema francês. Se propõe algo nessa direção, Barreto o faz em um tom tão baixo que se torna difícil até escutá-lo.
Também a referência a Hawks é um tanto de ocasião, já que seu modo de filmar fundava-se sobre um olhar muito específico sobre o homem e a humanidade -e também modernizante.
Se Barreto recorre a eles como referenciais privilegiados -assim como a Tom Jobim, é óbvio-, é menos por partilhar desse ímpeto modernizante do que por eles representarem o passado, essa "belle époque" perdida.
Mas observar o passado, acolhê-lo, recuperá-lo, isso pode constituir perfeitamente uma atitude atual, e é nesse sentido que o filme se torna defensável: ao acenar com um tempo perdido, em que se esperava o futuro com menos cinismo e mais esperança, "Bossa Nova" não apenas remete a um tempo vivenciado como melhor, mas de algum modo convoca seu espectador a ver esse passado mítico -mas tão próximo de nós- como perspectiva futura.
Se "O Que É Isso, Companheiro?" aplastava a história, "Bossa Nova" é seu oposto: trata-se, aqui, de buscar no passado inspiração e valores para enfrentar os desafios do presente.


Avaliação:    



Filme: Bossa Nova Direção: Bruno Barreto Produção: Brasil, 1998 Com: Antonio Fagundes, Amy Irving, Alexandre Borges, Débora Bloch, Pedro Cardoso, Drica Moraes Quando: a partir de hoje, nos cines Belas Artes (sala Villa-Lobos), Eldorado 2 e circuito


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