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MARCELO COELHO
Um trauma político e moral
Lembro -me de ter escrito,
em 1994, um artigo bem raivoso sobre os 30 anos do golpe militar. Na época, havia a tendência, a meu ver suspeita, de fazer
uma espécie de balanço histórico
-o famoso "por um lado... por
outro lado".
"De um lado", reconheciam-se
os atentados aos direitos humanos e às liberdades civis. "Por outro lado" -e essa parte sempre
vinha por último-, houve inegáveis realizações econômicas, a
modernização do nosso parque
industrial etc. Essa visão "equilibrada" das coisas era muito enganosa e terminava, a meu ver, desculpando o regime.
Foi Benedetto Croce, se não me
engano, quem afirmou que toda
história é sempre história contemporânea -e agora, em 2004,
o regime militar parece estar sendo objeto de um tratamento diferente do que aquele que eu criticava dez anos atrás.
A questão da tortura veio para
o primeiro plano. Creio que, em
boa parte, os livros de Elio Gaspari sobre o período tiveram o efeito
de romper o tabu que ainda existia em torno do assunto, enfatizando a monstruosidade da repressão e o seu caráter deliberado, planejado, consciente.
Deixa-se de falar na tortura como um "acidente inevitável de
percurso"; os crimes da repressão
política fixaram-se como uma
profunda, inapagável mácula na
história recente do país. Ao contrário do que se pretendia, o assunto não foi sumindo aos poucos
de cena. É um trauma político e
moral: o tema não se esgota, volta
sempre mais forte, não pode deixar de ser lembrado.
O curioso é que, enquanto se fala com mais franqueza a respeito
da tortura no regime militar, a
questão dos direitos humanos entre os presos comuns se tornou um
assunto quase tão impronunciável quanto o da repressão política
antigamente.
É verdade que o massacre do
Carandiru se tornou um marco
traumático, um símbolo daquilo
que não pode acontecer numa sociedade civilizada. Mas a prática
da tortura no sistema policial
brasileiro é uma realidade que
ninguém ignora e que inspira
tanta desconversa quanto o comprometimento dos militares com
a guerra suja, anos atrás.
Já as "realizações econômicas"
do regime autoritário... Talvez
ninguém se lembre mais delas.
Em 1994, falava-se dos investimentos em infra-estrutura como
algo desejável, que esteve por um
tempo ao alcance do Estado brasileiro e que dentro de um futuro
mais ou menos próximo seria
possível recuperar. Creio que hoje
em dia todo mundo já desistiu
desse futuro. Ou melhor: o longo
prazo já sumiu de vista.
Começo a desconfiar que o fim
dos juros altos passou a funcionar, no debate econômico contemporâneo, do mesmo modo
que o fim do regime militar há algumas décadas. Acabasse a ditadura, tudo se resolveria. Projeta-se sempre um "mais adiante" novo enquanto ninguém consegue
sair do mesmo lugar.
Por fim, o principal. Existia outro fator cuidando de tornar os
balanços de 94 mais favoráveis ao
regime militar do que os de hoje.
Há coisa de dez anos, ainda era
forte o medo de que a esquerda
tomasse o poder. Tratava-se de
buscar uma perspectiva matizada, avessa a confrontos muito nítidos entre o bem e o mal, entre a
ditadura e suas vítimas. Em 2004,
com o PT no governo, o medo da
esquerda desapareceu; com isso,
também se dissiparam os últimos
tabus sobre o golpe.
Pode-se então falar com mais
clareza que o regime militar foi
um grande mal, um absoluto mal
para o país. Claro que isso serve
de pouca coisa agora: quando o
governo Lula depende da ajuda
de José Sarney para abafar uma
CPI, é sinal de que o passado foi
enterrado de vez.
Na Ilustrada de sábado passado,
Luís Antônio Giron escreveu um
artigo de resposta à resenha que
fiz de seu livro, "Minoridade Crítica" (Ediouro/Edusp). Acho que
fui de fato injusto, na resenha, por
não ter destacado muito o trabalho de pesquisa do autor: ele consultou dezenas de jornais brasileiros do século 19, reproduzindo extensamente no livro os primeiros
exemplos de crítica musical entre
nós. Errei também com relação
ao orientador de Giron na USP:
foi Olivier Toni, e não José Eduardo Martins, como escrevi.
Outros pontos da réplica de Giron merecem, todavia, refutação.
Ao contrário do que seu artigo
pode dar a entender, consultei o
índice remissivo do livro à procura dos nomes de Schumann e
Wagner. Eles estão lá (o primeiro,
aliás, com grafia incorreta) e são
citados em determinado momento do livro. Mas esses autores não
aparecem no capítulo sobre a história da crítica musical, onde fazem falta -e era isso o que eu dizia na resenha.
Quanto ao padre José Maurício,
posso ler e reler, como recomenda
Giron, as páginas dedicadas ao
compositor e a análise feita no livro a respeito dos escritos de
Araújo Porto Alegre, sem que fique claro o ponto que mencionei
na resenha. Nas páginas 108, 21 e
63, Giron se refere ao "mito" de
José Maurício, sempre de forma
semelhante -existiria um processo de construção do mito do
compositor José Maurício como
"gênio espontâneo da nacionalidade". Mas o livro não indica por
que a genialidade, a espontaneidade ou o brasileirismo de José
Maurício seriam "mitos".
Por fim, não desvalorizo o trabalho de Giron por ter "arrolado
hipóteses e tê-las testado", como
ele afirma; lamento que, por injunção de formalidades acadêmicas, ele chame de "hipótese" uma
simples declaração de intenções
como a de que "a vida musical no
Brasil durante o Primeiro e Segundo reinados pode ser descrita
a partir dos textos analisados".
Até pode, e o livro de Giron contribui para isso, mas "testar uma
hipótese" é coisa bem diferente.
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