São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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MARCELO COELHO

Um trauma político e moral

Lembro -me de ter escrito, em 1994, um artigo bem raivoso sobre os 30 anos do golpe militar. Na época, havia a tendência, a meu ver suspeita, de fazer uma espécie de balanço histórico -o famoso "por um lado... por outro lado".
"De um lado", reconheciam-se os atentados aos direitos humanos e às liberdades civis. "Por outro lado" -e essa parte sempre vinha por último-, houve inegáveis realizações econômicas, a modernização do nosso parque industrial etc. Essa visão "equilibrada" das coisas era muito enganosa e terminava, a meu ver, desculpando o regime.
Foi Benedetto Croce, se não me engano, quem afirmou que toda história é sempre história contemporânea -e agora, em 2004, o regime militar parece estar sendo objeto de um tratamento diferente do que aquele que eu criticava dez anos atrás.
A questão da tortura veio para o primeiro plano. Creio que, em boa parte, os livros de Elio Gaspari sobre o período tiveram o efeito de romper o tabu que ainda existia em torno do assunto, enfatizando a monstruosidade da repressão e o seu caráter deliberado, planejado, consciente.
Deixa-se de falar na tortura como um "acidente inevitável de percurso"; os crimes da repressão política fixaram-se como uma profunda, inapagável mácula na história recente do país. Ao contrário do que se pretendia, o assunto não foi sumindo aos poucos de cena. É um trauma político e moral: o tema não se esgota, volta sempre mais forte, não pode deixar de ser lembrado.
O curioso é que, enquanto se fala com mais franqueza a respeito da tortura no regime militar, a questão dos direitos humanos entre os presos comuns se tornou um assunto quase tão impronunciável quanto o da repressão política antigamente.
É verdade que o massacre do Carandiru se tornou um marco traumático, um símbolo daquilo que não pode acontecer numa sociedade civilizada. Mas a prática da tortura no sistema policial brasileiro é uma realidade que ninguém ignora e que inspira tanta desconversa quanto o comprometimento dos militares com a guerra suja, anos atrás.
Já as "realizações econômicas" do regime autoritário... Talvez ninguém se lembre mais delas. Em 1994, falava-se dos investimentos em infra-estrutura como algo desejável, que esteve por um tempo ao alcance do Estado brasileiro e que dentro de um futuro mais ou menos próximo seria possível recuperar. Creio que hoje em dia todo mundo já desistiu desse futuro. Ou melhor: o longo prazo já sumiu de vista.
Começo a desconfiar que o fim dos juros altos passou a funcionar, no debate econômico contemporâneo, do mesmo modo que o fim do regime militar há algumas décadas. Acabasse a ditadura, tudo se resolveria. Projeta-se sempre um "mais adiante" novo enquanto ninguém consegue sair do mesmo lugar.
Por fim, o principal. Existia outro fator cuidando de tornar os balanços de 94 mais favoráveis ao regime militar do que os de hoje. Há coisa de dez anos, ainda era forte o medo de que a esquerda tomasse o poder. Tratava-se de buscar uma perspectiva matizada, avessa a confrontos muito nítidos entre o bem e o mal, entre a ditadura e suas vítimas. Em 2004, com o PT no governo, o medo da esquerda desapareceu; com isso, também se dissiparam os últimos tabus sobre o golpe.
Pode-se então falar com mais clareza que o regime militar foi um grande mal, um absoluto mal para o país. Claro que isso serve de pouca coisa agora: quando o governo Lula depende da ajuda de José Sarney para abafar uma CPI, é sinal de que o passado foi enterrado de vez.
  Na Ilustrada de sábado passado, Luís Antônio Giron escreveu um artigo de resposta à resenha que fiz de seu livro, "Minoridade Crítica" (Ediouro/Edusp). Acho que fui de fato injusto, na resenha, por não ter destacado muito o trabalho de pesquisa do autor: ele consultou dezenas de jornais brasileiros do século 19, reproduzindo extensamente no livro os primeiros exemplos de crítica musical entre nós. Errei também com relação ao orientador de Giron na USP: foi Olivier Toni, e não José Eduardo Martins, como escrevi.
Outros pontos da réplica de Giron merecem, todavia, refutação. Ao contrário do que seu artigo pode dar a entender, consultei o índice remissivo do livro à procura dos nomes de Schumann e Wagner. Eles estão lá (o primeiro, aliás, com grafia incorreta) e são citados em determinado momento do livro. Mas esses autores não aparecem no capítulo sobre a história da crítica musical, onde fazem falta -e era isso o que eu dizia na resenha.
Quanto ao padre José Maurício, posso ler e reler, como recomenda Giron, as páginas dedicadas ao compositor e a análise feita no livro a respeito dos escritos de Araújo Porto Alegre, sem que fique claro o ponto que mencionei na resenha. Nas páginas 108, 21 e 63, Giron se refere ao "mito" de José Maurício, sempre de forma semelhante -existiria um processo de construção do mito do compositor José Maurício como "gênio espontâneo da nacionalidade". Mas o livro não indica por que a genialidade, a espontaneidade ou o brasileirismo de José Maurício seriam "mitos".
Por fim, não desvalorizo o trabalho de Giron por ter "arrolado hipóteses e tê-las testado", como ele afirma; lamento que, por injunção de formalidades acadêmicas, ele chame de "hipótese" uma simples declaração de intenções como a de que "a vida musical no Brasil durante o Primeiro e Segundo reinados pode ser descrita a partir dos textos analisados". Até pode, e o livro de Giron contribui para isso, mas "testar uma hipótese" é coisa bem diferente.


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