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CONTARDO CALLIGARIS
A música, a letra e as palavras de José Miguel Wisnik
Um colega psicanalista, de
nacionalidade francesa,
passa pelo Brasil de vez em quando, palestrando. Não sei se ele
ainda usa o mesmo estratagema
retórico, mas, durante anos, ele
começava suas falas pedindo desculpas por não falar a língua do
Brasil e afirmando que, embora
não entendesse bulhufas, a sonoridade da língua lhe parecia maravilhosa, como o canto variegado dos pássaros da Amazônia.
Os presentes eram seduzidos pela manifestação de simpatia: ele
gosta de nossos fonemas, portanto, ele gosta da gente, não é? Alguns ficavam incomodados com o
corolário dessa abertura sedutora. Entendiam assim: escutar o
que vocês têm para dizer não me
interessa, mas adoro ouvir seus
garganteados alegres. Quanto ao
conteúdo, repitam o que digo; afinal, entre as aves, a mais brasileira não é o papagaio?
Sou alérgico à idéia de que os
brasileiros se distinguiriam pela
agilidade musical de sua glote.
Lembra-me a época em que os
italianos, pelo mundo afora,
eram contemplados com sorrisos
condescendentes por tocarem
mandolina e cantarem "O Sole
Mio".
Ora, acabo de ler "Sem Receita -
Ensaios e Canções", livro que reúne textos, letras e entrevistas de
José Miguel Wisnik desde 1989
(acompanha o CD da música
composta por Wisnik para o grupo Corpo). Wisnik, como se sabe,
é professor de literatura, ensaísta,
musicólogo e músico.
O conjunto dos textos celebra a
qualidade excepcional da música
popular brasileira, que constitui
propriamente "um modo de pensar", uma expressão cultural que
é, paradoxalmente, ao mesmo
tempo popular, refinada e erudita.
Wisnik começa nos mostrando
que o destino singular da música
popular no Brasil (seu sucesso e
sua capacidade de constituir uma
mediação com a música erudita e
com a cultura mais "alta") já estava anunciado, ou melhor, contido, em "Um Homem Célebre",
de Machado de Assis.
Mais adiante, ele nos oferece,
por exemplo, uma interpretação
do espírito da bossa nova como
otimismo que, citando Caetano,
contém em si "todos os males do
mundo", um "otimismo trágico".
Complemento desse otimismo: o
pessimismo, "que Caetano atribui mais de uma vez a si mesmo e
aos tropicalistas", um "pessimismo alegre". O otimismo trágico e
o pessimismo alegre da palavra
cantada e popular falam do estado de espírito de décadas de cultura nacional de uma forma que
talvez substitua (numa troca vantajosa) os esforços da alta cultura
para definir a nação.
Para quem achasse que essa é a
função da música popular em
qualquer cultura, Wisnik analisa
"A Terceira Margem do Rio",
música que Milton Nascimento
escreveu pensando no conto de
Guimarães Rosa e para a qual pediu a Caetano que escrevesse a letra. Pergunta: "Em que cultura
ou em que país (...), o cancionista
popular chega a ser o sujeito de
uma interpretação vertical de seu
maior escritor?".
Num dos ensaios reunidos no livro, "A Gaia Ciência" (que é justamente o saber contido na música popular), Wisnik discute com
um livro que publiquei em 1991,
"Hello Brasil, Notas de um Psicanalista Europeu Viajando ao
Brasil". Recém-chegado, eu tentava conhecer o país que me adotava. O ponto de vista era o do viajante estrangeiro, que entende pela negativa, ou seja, no caso, comparando o Brasil com a Europa e
descobrindo as diferenças como
se fossem faltas de alguma coisa, e
não presença de algo distinto.
Wisnik comenta minhas observações sobre as falhas do processo
que permite a um povo integrar-se e sentir-se "um" (na época, eu
chamava esse processo "umtegração"). Ele escreve: "Não me parece que Calligaris tenha avaliado
com atenção o lugar que a canção
popular ocupa no processo de
"umtegração" brasileira". Logo ele
evoca Caetano: "Minha pátria é
minha língua/ e eu não tenho pátria/ tenho mátria e quero frátria". É uma resposta a minhas
considerações da época sobre a
ausência de um pai fundador
brasileiro. E Wisnik sugere outra,
mais adequada ainda, na letra de
"Paratodos", de Chico Buarque:
"O meu pai era paulista/ meu
avô, pernambucano/ o meu bisavô, mineiro/ meu tataravô, baiano/ meu maestro soberano/ foi
Antonio Brasileiro".
Wisnik não está propondo Tom
Jobim como pai da nação (embora, nessa função, ele fosse melhor
do que muitos outros), mas lembra assim que a música popular
talvez seja o campo em que mais
se pensou e se pensa o que é ser
brasileiro.
Não é por acaso que meu livro
de viajante recebeu as críticas
mais interessantes (para mim) de
Wisnik e do próprio Caetano, em
"Verdade Tropical". Para quem,
ao interrogar o Brasil, enxergar
as falhas sem perceber direito as
invenções da cultura nacional,
parece que a música popular é
um repertório de respostas.
O colega francês do qual falei
antes tem razão: os brasileiros
cantam bem. Agora, não são exatamente aves, e é bom escutar
suas palavras.
Aparte, sobre identidade nacional: li recentemente "Ladrilhadores e Semeadores", de Luiz Guilherme Piva, da Editora 34. É um
extraordinário percurso no pensamento brasileiro de 1920 a 1940,
quando a questão da identidade
nacional brasileira e da modernização ocupava as melhores mentes do país.
@ - ccalligari@uol.com.br
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