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Nunca se esquece do primeiro sutiã que cai
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Tudo era pecado nos anos 50.
Eu tinha uns doze anos e ouvia
duas correntes de teoria sexual: a do Bené, o pipoqueiro,
e seu fiel assistente, Alfredinho, o aleijado -que me ensinavam coisas cínicas como
"toda mulher dá, menos as mal
cantadas" ou "amor é coisa de
viado"- ,ou então a outra
corrente, em meio à fumaça de
turíbulos, na missa do colégio,
sobre os perigos do inferno para os que pecavam contra a
castidade.
O resultado disso é que eu dividi as mulheres em dois grupos: as "inatingíveis" e as
"sem-vergonha". E desenvolvi
um covarde romantismo: de
longe, eu era um fauno. De
perto, um "pierrot". Vivia de
binóculo na casa de meu avô,
olhando mulher nua nas janelas ou vendo filmes franceses
(eu era comprido e entrava),
em que os seios nus de Françoise Arnoul só perdiam para
"Frineia, a Cortesã do Oriente", nua diante do tribunal que
a julgava, ou para Maria Antonieta Pons, a rumbeira de
coxas inefáveis que eu olhava
do alto do cinema Alaska, em
sôfregos pecados.
Por outro lado, as meninas
que eu amava não "existiam";
elas flutuavam diante de mim
como anjos ou "dulcinéias"
impossíveis. Simone era morena, linda, tinha um queixo
com covinha e se recusava a
dançar; Norma fez cara de nojo, quando eu falei hollywoodianamente "I louve you", e
saiu contando para todo mundo; Miss Baby era uma mulher
de 30 anos que dançara no cassino da Urca, morava ao lado
de minha casa e ria de meu
tremor; Ciomara deu para me
chamar de "pirralho"; Márcia,
a nadadora que depois morreu
de leucemia, nem me olhava,
porque era apaixonada pelos
campeões que pulavam do
trampolim em saltos triplos e
"anjos"; Terezinha se fantasiava de odalisca e cantava (não
para mim): "É com esse que eu
vou, dançar até cair no
chão...".
Essas eu amava, sorvia-as
como imagens de sonho, como
santas, sem desejo sexual. Nos
cinemas, eu nem lhes encostava a mão, porque, nas pré-estréias do S. Luiz ou do Metrô,
vendo "Ivanhoé, o Vingador
do Rei" ou "Tom e Jerry", eu as
preferia arredias, inatingíveis,
o que aumentava minha nascente vocação para "pierrot'
apaixonado", muito para a
contrariedade de Bené e Alfredinho, que já me olhavam desconfiados, correndo eu o risco
de sair da categoria de "babaca" para a terrível legião dos
"viados", já que eu nunca pegava nos peitinhos de nenhuma, contrariamente a meu
amigo e rival Cabeção, que, veridicamente ou não, se gabava
até de sodomias perpetradas
em alunas do colégio Jacobina.
Amor, sonho, falta de ar, enlevo e lágrimas eram para as
meninas impossíveis. Sexo, desejo, vícios solitários eram dedicados às outras, à grande
Angelita Martinez que dançava na TV Tupi ou à Virginia
Lane na "Revista do Rádio".
Meu pai era da Aeronáutica,
e, nessa época, a grande crise
política pela morte do major
Rubens Vaz estava no auge.
"Mar de lama", "mar de lama"
era o que se ouvia no rádio, na
voz do Carlos Lacerda, na briga da UDN com o governo de
Getúlio, centrada na república
do Galeão, para onde meu pai
ia de uniforme.
"Mar de lama" me soava como o Mangue, me soava como
o mundo que me atraía, era
parecido com os pecados que
eu queria cometer, como as
histórias de Alfredinho, que
contava da freira que ele afirmava comer, desde o tempo da
paralisia infantil no hospital.
Foi aí que apareceu a Daisy,
que não era nem putinha nem
santa. Até mesmo o experiente
Bené não soube como classificá-la, quando ela chegou na
carrocinha de sapato alto,
muito pintada para a idade,
mas muito séria, pedindo pipoca doce e cantando para si
mesma o baião "Kalu", sucesso
da famosa Dalva de Oliveira.
Ela vestia uma roupa muito
maior que ela, era pálida e trêmula e tinha os olhos grandes e
muito separados, por cima de
uma grande boca, onde tremia
um esgar de deboche ou um riso contido que às vezes aflorava sem motivo, como se ela estivesse conversando com alguém dentro de si mesma.
Meus mestres de sexo ficaram mudos e embaraçados,
diante do fato novo. Daisy morava sozinha com o pai, um
médico muito triste e vermelho, apertado num terno negro, com "pince-nez" pendente
do bolso. Era viúvo e, diziam,
espírita, que tratava de doentes, ali na própria casa onde tinha consultório.
Daisy me siderou. Fiquei absolutamente apaixonado em
segundos, a ponto de Bené me
olhar com preocupação. Os
olhos de Daisy também me espantavam, porque parecia que
uma outra pessoa me olhava
por detrás deles. Daisy trazia
um ar de inquietude que eu
nunca vira em ninguém. Seu
jeito etéreo, seu flutuar de louca dava-lhe uma aura mágica,
irreal, que virava tudo em nada, que virava a vida que eu
conhecia em reles cotidiano
rasteiro, diferente do mundo
fabuloso, misterioso, que ela
parecia habitar.
Era mais velha do que eu e
me dizia frases enigmáticas,
que ela lia de um diário de capa roxa cheio de recortes e desenhos, enquanto eu ficava
afogado em seus olhos, sem jamais tocá-la. "Esse vestido é
francês, era da minha mãe, etiqueta Jacques Fath; esse leque
era da minha avó, que foi
amante do senador...".
Um belo dia, ela me levou
para sua casa escura, onde o
pai atendia doentes. Entrei por
um corredor cheio de retratos
de uma mesma mulher, sua
mãe morta, que o pai mandara
ampliar, desconsolado na viuvez de luto fechado. A esses retratos seguiam-se outras fotos
de pessoas fora de foco, deitadas, sentadas, inatuais, com
manchas estranhas como nuvens brancas saindo de suas
bocas, pairando em volta de
suas cabeças, como algodão.
"É o ectoplasma, a matéria da
alma", dizia-me Daisy, "o espírito delas, fotografado por papai".
A "alma" era um algodão
branco. Daisy, muito agitada e
encostando-se em mim, perguntou se eu já vira "espíritos"
e disse que, se eu esperasse do
lado de fora do consultório, eu
teria uma "revelação do
além", mas que eu só poderia
entrar quando ouvisse música
lá dentro. Fiquei no corredor
escuro, olhado pelos retratos
da mãe de Daisy, em muitas
poses, ou triste ou sorrindo e
(lembro-me) ao lado do pai, de
tailleur e chapéu no Pão de
Açúcar. Eu esperava Daisy me
chamar, ansioso aprendiz de
feiticeiro.
De repente, começou uma
música dentro do consultório
-se não me engano, era Francisco Alves: "...na carícia de
um beijo". Entro de coração
disparado.
Na sala escura, Daisy estava
deitada na mesa de consulta
do pai, com quatro velas acesas em volta, com o vestido da
mãe aberto até a cintura, o
busto nu, com os seios grandes
dourados pela luz das velas.
Com os olhos fechados, ela fingia não respirar. Eu, em pânico, sussurrava: "Daisy...acorda! Vem gente!...". Não sei se
ela me puxou ou se eu mesmo
mergulhei entre seus seios, beijando-os e deslizando meu rosto por seu corpo até o ventre,
numa fortíssima excitação que
faria inveja ao grande Cabeção.
E foi assim que fui surpreendido pela imensa gritaria das
empregadas no corredor, invadindo a sala aos gritos de: "O
Getúlio se matou!!". Os rádios
em altos brados davam em edição extraordinária o suicídio
de Getúlio, com um tiro no peito, todo ensanguentado. "O
presidente morreu!", gritavam.
Surgiu uma preta chorando, a
cozinheira soluçava no avental. Fugi correndo, ainda de
"pênis erectus", sob a voz trágica do repórter Esso. No dia
seguinte, mesmo com o grande
mar de povo fluindo diante do
caixão de dr. Getúlio, eu só via
o corpo branco de Daisy, flutuando sobre as multidões.
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