São Paulo, terça, 31 de março de 1998

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Nunca se esquece do primeiro sutiã que cai

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Tudo era pecado nos anos 50. Eu tinha uns doze anos e ouvia duas correntes de teoria sexual: a do Bené, o pipoqueiro, e seu fiel assistente, Alfredinho, o aleijado -que me ensinavam coisas cínicas como "toda mulher dá, menos as mal cantadas" ou "amor é coisa de viado"- ,ou então a outra corrente, em meio à fumaça de turíbulos, na missa do colégio, sobre os perigos do inferno para os que pecavam contra a castidade.
O resultado disso é que eu dividi as mulheres em dois grupos: as "inatingíveis" e as "sem-vergonha". E desenvolvi um covarde romantismo: de longe, eu era um fauno. De perto, um "pierrot". Vivia de binóculo na casa de meu avô, olhando mulher nua nas janelas ou vendo filmes franceses (eu era comprido e entrava), em que os seios nus de Françoise Arnoul só perdiam para "Frineia, a Cortesã do Oriente", nua diante do tribunal que a julgava, ou para Maria Antonieta Pons, a rumbeira de coxas inefáveis que eu olhava do alto do cinema Alaska, em sôfregos pecados.
Por outro lado, as meninas que eu amava não "existiam"; elas flutuavam diante de mim como anjos ou "dulcinéias" impossíveis. Simone era morena, linda, tinha um queixo com covinha e se recusava a dançar; Norma fez cara de nojo, quando eu falei hollywoodianamente "I louve you", e saiu contando para todo mundo; Miss Baby era uma mulher de 30 anos que dançara no cassino da Urca, morava ao lado de minha casa e ria de meu tremor; Ciomara deu para me chamar de "pirralho"; Márcia, a nadadora que depois morreu de leucemia, nem me olhava, porque era apaixonada pelos campeões que pulavam do trampolim em saltos triplos e "anjos"; Terezinha se fantasiava de odalisca e cantava (não para mim): "É com esse que eu vou, dançar até cair no chão...".
Essas eu amava, sorvia-as como imagens de sonho, como santas, sem desejo sexual. Nos cinemas, eu nem lhes encostava a mão, porque, nas pré-estréias do S. Luiz ou do Metrô, vendo "Ivanhoé, o Vingador do Rei" ou "Tom e Jerry", eu as preferia arredias, inatingíveis, o que aumentava minha nascente vocação para "pierrot' apaixonado", muito para a contrariedade de Bené e Alfredinho, que já me olhavam desconfiados, correndo eu o risco de sair da categoria de "babaca" para a terrível legião dos "viados", já que eu nunca pegava nos peitinhos de nenhuma, contrariamente a meu amigo e rival Cabeção, que, veridicamente ou não, se gabava até de sodomias perpetradas em alunas do colégio Jacobina.
Amor, sonho, falta de ar, enlevo e lágrimas eram para as meninas impossíveis. Sexo, desejo, vícios solitários eram dedicados às outras, à grande Angelita Martinez que dançava na TV Tupi ou à Virginia Lane na "Revista do Rádio".
Meu pai era da Aeronáutica, e, nessa época, a grande crise política pela morte do major Rubens Vaz estava no auge. "Mar de lama", "mar de lama" era o que se ouvia no rádio, na voz do Carlos Lacerda, na briga da UDN com o governo de Getúlio, centrada na república do Galeão, para onde meu pai ia de uniforme.
"Mar de lama" me soava como o Mangue, me soava como o mundo que me atraía, era parecido com os pecados que eu queria cometer, como as histórias de Alfredinho, que contava da freira que ele afirmava comer, desde o tempo da paralisia infantil no hospital.
Foi aí que apareceu a Daisy, que não era nem putinha nem santa. Até mesmo o experiente Bené não soube como classificá-la, quando ela chegou na carrocinha de sapato alto, muito pintada para a idade, mas muito séria, pedindo pipoca doce e cantando para si mesma o baião "Kalu", sucesso da famosa Dalva de Oliveira.
Ela vestia uma roupa muito maior que ela, era pálida e trêmula e tinha os olhos grandes e muito separados, por cima de uma grande boca, onde tremia um esgar de deboche ou um riso contido que às vezes aflorava sem motivo, como se ela estivesse conversando com alguém dentro de si mesma.
Meus mestres de sexo ficaram mudos e embaraçados, diante do fato novo. Daisy morava sozinha com o pai, um médico muito triste e vermelho, apertado num terno negro, com "pince-nez" pendente do bolso. Era viúvo e, diziam, espírita, que tratava de doentes, ali na própria casa onde tinha consultório.
Daisy me siderou. Fiquei absolutamente apaixonado em segundos, a ponto de Bené me olhar com preocupação. Os olhos de Daisy também me espantavam, porque parecia que uma outra pessoa me olhava por detrás deles. Daisy trazia um ar de inquietude que eu nunca vira em ninguém. Seu jeito etéreo, seu flutuar de louca dava-lhe uma aura mágica, irreal, que virava tudo em nada, que virava a vida que eu conhecia em reles cotidiano rasteiro, diferente do mundo fabuloso, misterioso, que ela parecia habitar.
Era mais velha do que eu e me dizia frases enigmáticas, que ela lia de um diário de capa roxa cheio de recortes e desenhos, enquanto eu ficava afogado em seus olhos, sem jamais tocá-la. "Esse vestido é francês, era da minha mãe, etiqueta Jacques Fath; esse leque era da minha avó, que foi amante do senador...".
Um belo dia, ela me levou para sua casa escura, onde o pai atendia doentes. Entrei por um corredor cheio de retratos de uma mesma mulher, sua mãe morta, que o pai mandara ampliar, desconsolado na viuvez de luto fechado. A esses retratos seguiam-se outras fotos de pessoas fora de foco, deitadas, sentadas, inatuais, com manchas estranhas como nuvens brancas saindo de suas bocas, pairando em volta de suas cabeças, como algodão. "É o ectoplasma, a matéria da alma", dizia-me Daisy, "o espírito delas, fotografado por papai".
A "alma" era um algodão branco. Daisy, muito agitada e encostando-se em mim, perguntou se eu já vira "espíritos" e disse que, se eu esperasse do lado de fora do consultório, eu teria uma "revelação do além", mas que eu só poderia entrar quando ouvisse música lá dentro. Fiquei no corredor escuro, olhado pelos retratos da mãe de Daisy, em muitas poses, ou triste ou sorrindo e (lembro-me) ao lado do pai, de tailleur e chapéu no Pão de Açúcar. Eu esperava Daisy me chamar, ansioso aprendiz de feiticeiro.
De repente, começou uma música dentro do consultório -se não me engano, era Francisco Alves: "...na carícia de um beijo". Entro de coração disparado.
Na sala escura, Daisy estava deitada na mesa de consulta do pai, com quatro velas acesas em volta, com o vestido da mãe aberto até a cintura, o busto nu, com os seios grandes dourados pela luz das velas. Com os olhos fechados, ela fingia não respirar. Eu, em pânico, sussurrava: "Daisy...acorda! Vem gente!...". Não sei se ela me puxou ou se eu mesmo mergulhei entre seus seios, beijando-os e deslizando meu rosto por seu corpo até o ventre, numa fortíssima excitação que faria inveja ao grande Cabeção.
E foi assim que fui surpreendido pela imensa gritaria das empregadas no corredor, invadindo a sala aos gritos de: "O Getúlio se matou!!". Os rádios em altos brados davam em edição extraordinária o suicídio de Getúlio, com um tiro no peito, todo ensanguentado. "O presidente morreu!", gritavam. Surgiu uma preta chorando, a cozinheira soluçava no avental. Fugi correndo, ainda de "pênis erectus", sob a voz trágica do repórter Esso. No dia seguinte, mesmo com o grande mar de povo fluindo diante do caixão de dr. Getúlio, eu só via o corpo branco de Daisy, flutuando sobre as multidões.



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