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CONTARDO CALLIGARIS
"Pearl Harbor" pode ser uma meditação sobre a decadência
"Pearl Harbor" chega
às salas brasileiras amanhã. A estréia americana, no fim
de semana passado, não foi um
triunfo -apenas um sucesso.
Não estranhei, pois o filme é um
pouco amargo para os espectadores dos EUA.
Assisti duas vezes a ele: queria
retomar o pulso da platéia que
me pareceu, certo, comovida com
os amores, as amizades e os heroísmos, mas, sobretudo e paradoxalmente, triste e pensativa.
Não sei se "Pearl Harbor" será
um sucesso no Brasil. Talvez os
efeitos especiais e o dramalhão toquem um refrão universal, do tipo "Titanic". De qualquer forma,
o filme é interessante para quem
queira entender o momento atual
da consciência americana.
"Pearl Harbor" é o último fogo
de artifício de uma década que
idealiza intensamente a geração
de americanos que lutaram na
Segunda Guerra Mundial.
São chamados "the greatest generation", a maior das gerações:
a eles são consagrados livros, programas de televisão, documentários, filmes e monumentos. Segundo a cultura popular, esses
pais ideais foram capazes de paixões, amores e amizades sublimes. Mesmo vivendo tão intensamente, sabiam reconhecer seu dever e identificar a hora do sacrifício. Eram sempre voluntários,
sem choramingar. Cresceram nos
anos 20 e 30, uma época em que
(sempre segundo a fantasia ideal)
o problema não era como ostentar luxos, mas como colocar na
mesa o pão de cada dia. Tinham
instrução média, sem "frescuras"
intelectuais, mas com orgulhosa
independência de espírito. Tinham ambições saudáveis e limitadas. Eram idealmente de origem rural -por isso sabiam caçar, pescar, arrumar seus carros,
construir casas e, enfim, souberam lutar.
Não sei se os homens da "grande geração" foram mesmo desse
jeito. Mas é certo que nem sempre
a cultura popular imaginou que
fossem assim. Ao contrário. Os cinéfilos lembram-se de "From Here to Eternity" ("A um Passo da
Eternidade"), Oscar de 53. Sem
efeitos especiais, é "Pearl Harbor"
imaginado 50 anos atrás por um
olhar impiedoso. Esse olhar durou até os anos 80. Em 79, num
remake do filme de 53, os protagonistas são ainda mais sinistros.
Os homens destinados à eternidade da glória são um soldado que
se apaixona por uma prostituta e
um sargento que consegue transar com a mulher do capitão (que
é uma perua). Aparentemente,
dos anos 50 aos 80, os americanos
não precisaram idealizar tanto
seus grandes guerreiros.
Hoje o monumento erigido à
"grande geração" parece ser o doloroso serviço fúnebre da grande
figura mítica americana: uma
mistura do homem da milícia que
defendeu sua independência contra os ingleses com o homem da
fronteira em luta contra os índios,
os elementos e a modernização. É
"O Patriota" com "Jeremiah
Johnson". Esse mito do cidadão
soldado acompanhou os combatentes americanos da Segunda
Guerra Mundial: os voluntários
de 41 e 42 assistiram a "Sergeant
York" (1941), que foi filmado para
eles. Como Gary Cooper, eram
(ou se imaginavam) livres-pensadores rurais, atiradores temíveis,
herdeiros de Davy Crockett e Daniel Boone.
Ora, aconteceu que, de 50 a 90,
os EUA prosperaram demais. A
crítica ou mesmo a irrisão dos
ideais e das vidas "simples" da
grande geração serviu para que
os "baby-boomers" (os que nasceram na explosão populacional
posterior à Segunda Guerra Mundial) se autorizassem a perseguir
conforto e riqueza, evitando o peso de tributos excessivos ao dever
e à comunidade. De repente, hoje,
aqueles antigos ideais fazem falta. Os heróis de "Pearl Harbor",
como o sargento York, pertencem
a uma espécie de americano que
está em via de extinção. Descobre-se hoje que talvez eles sejam
indispensáveis para dar sentido à
nação.
Na sala de cinema, sexta-feira,
à minha esquerda, uma moça
chora. À direita, um homem chegou pronto para uma orgia de pipoca, chocolate e Coca-Cola, mas
deixou tudo no chão, intato. Na
saída, adolescentes conversam sobre a possibilidade de entrar para
a Marinha e ganhar assim uma
bolsa para a universidade. Um
deles aponta o dedo para um
amigo: "Você não tem colhão para isso". Ninguém no grupo acha
graça. É que a questão parece pairar no ar para todos: como Roosevelt diz no filme, o mundo pensava que os americanos fossem uma
nação de fracotes e playboys, eles
(a grande geração) mostraram o
contrário -e nós, agora, o que
somos?
Em 66/67, passei um bom tempo
em Houston, Texas. Vivia na casa
de Bob, que era então meu sogro
-numa periferia onde os restos
rurais lutavam contra a invasão
da caricatura suburbana. Com
Bob, conheci a América da grande geração.
Era um universo machista, às
vezes (mas nem sempre) racista,
com um perfume de lubrificante
de armas, de pólvora e de isca viva para pescar, com conversas sobre caça e munições, com óleo de
motor e de freios no chão de garagens que pareciam oficinas mecânicas.
Hoje, nas bancas de jornais
americanas, a seção de revistas de
armas, caça e pesca -que ainda
era enorme nos anos 60- é invadida pelas revistas de "fitness", de
computação e de investimento.
Nesse contexto, para os americanos, lembrar-se de Pearl Harbor pode ser uma meditação sobre a decadência.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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