São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O peregrino na noite chuvosa de maio

Fui dar minha volta pela lagoa, perdera a manhã que estava chuvosa; ao cair da noitinha, houve uma estiagem, comecei a caminhar; quando passava perto da igreja de Santa Margarida Maria, a mais próxima de casa, a chuvinha voltou a cair, de leve, com vontade de ir embora, mas suficiente para me encharcar.
Entra-se numa igreja por vários motivos e até sem motivo algum. Não foi o meu caso. Havia uma cerimônia àquela hora e prefiro as igrejas vazias, detesto os templos com muita gente. Volta e meia, em outras caminhadas, dou um pulo naquela igreja, sei que no mês de maio colocam uma imagem de Nossa Senhora numa mesinha ao lado da porta principal, gosto de ir lá, ver a santinha que parece sorrir para todos, até para mim.
Ali estivera, dois dias antes, levando o último recado de um irmão que acabara de morrer e me pedira que colocasse uma flor branca aos pés daquela imagem. Fiz-lhe a vontade e fiz a minha própria vontade, achando que tudo aquilo fazia sentido, a flor branca, o irmão que acabara de morrer, eu próprio atordoado, precisando que alguém sorrisse para mim.
Mas ali, naquele início de noite e de chuva, a igreja estava lotada e não encontrei a imagem na mesinha ao lado da porta principal nem ao lado de porta alguma. Senti-me ofendido, fui à sacristia tomar satisfações. A moça que me atendeu riu na minha cara. ""O que o senhor veio fazer aqui? Não viu que a imagem está no altar principal, que hoje vamos coroar Nossa Senhora, é fim de maio?"
Só então me lembrei de que era maio e de que chegava o fim do mês dedicado a Maria. Reparando bem, notei que a cerimônia que ali se realizava não era um casamento, muito comum neste mês e naquele horário, as luzes acesas, as bancadas cheias de flores, o órgão tocando. Havia, isso sim, muitas crianças, muitas mocinhas sobretudo, e foi difícil conseguir um ângulo em que pudesse ver a imagem lá no altar, os braços estendidos, o manto azul, o lábio que parecia sorrir.
Iam coroar Nossa Senhora. Uma tradição piedosa do marianismo que certa parte da igreja, de uns tempos para cá, se não condenou formalmente, botou em quarentena. Estava certo de que não mais se coroava Nossa Senhora no final de maio, eu próprio me esquecera da cerimônia, embora meu primeiro contato, contato para valer com uma igreja, tenha sido exatamente uma coroação em final de maio, na matriz de Nossa Senhora da Guia, no alto do único morro do bairro onde nasci.
Foi um alumbramento -diria eu, se fosse poeta. Era a primeira vez que participava de uma reunião noturna. Nem sabia direito o que era aquilo, alguém que me levaria para casa decidiu entrar na igreja toda iluminada, onde crianças cantavam: ""Vinde, vamos todos, com flores à Maria...".
Para falar a verdade, nunca antes entrara numa igreja, com exceção do dia do meu batismo, quando eu ainda era aquilo que o padre chamou ""o inocente Carlos".
Depois que deixei de ser o inocente Carlos, nunca mais pisei numa igreja. Tinha medo delas. Certa vez, passava de bonde por Vila Isabel e vira um enterro entrando na matriz de Nossa Senhora de Lourdes, daí que pensava que as igrejas estavam abarrotadas de ataúdes, cheias de mortos, cheias de coisas mortas.
Mas, naquela noite de final de maio, a igreja de N.S. da Guia estava fosforescente, cheia de luzes, o som do órgão era generoso, alegre, e havia meninas vestidas de anjinhos, com uma tiara branca na testa, uma delas eu conhecia, morava perto de mim e eu a considerava minha namorada, embora ela nem suspeitasse disso.
Muitos maios se seguiram, muitas namoradas também, logo depois fiz a primeira comunhão, entrei para o seminário, saí do seminário, perdi a fé e a compostura, mas nunca esqueci aquele maio distante, as luzes acesas, as meninas cantando, vinde, vamos todos...
E ali estava eu, tantos e tantos anos depois, me abrigando da chuva e vendo mocinhas que levavam uma bonita coroa de prata em direção ao altar iluminado, para botar na cabeça da imagem que me conhece porque sorri para mim sempre que estou diante dela.
O som do órgão cresceu, bateram palmas, eu me surpreendi batendo palmas, lá no fundo da igreja, escondido como o peregrino fatigado de caminhar sem chegar a lugar algum.
A chuva tinha passado. O manobreiro que tomava conta dos carros estacionados fechou o seu guarda-chuva, era hora de voltar à lagoa, recomeçando a caminhada interrompida. Havia um pouco de vento lá fora e dentro da igreja havia luz, calor e música. Ia ficando mais um pouco, mas achei que seria hipocrisia continuar ali me abrigando do vento e da chuva, embora tivesse batido palmas para uma imagem que sorria para mim. Batendo palmas talvez pela minha coragem de estar ali, achando que, afinal, chegara aonde sempre quisera ficar.



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