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CARLOS HEITOR CONY
O peregrino na noite chuvosa de maio
Fui dar minha volta pela lagoa, perdera a manhã que estava chuvosa; ao cair da noitinha,
houve uma estiagem, comecei a
caminhar; quando passava perto
da igreja de Santa Margarida
Maria, a mais próxima de casa, a
chuvinha voltou a cair, de leve,
com vontade de ir embora, mas
suficiente para me encharcar.
Entra-se numa igreja por vários
motivos e até sem motivo algum.
Não foi o meu caso. Havia uma
cerimônia àquela hora e prefiro
as igrejas vazias, detesto os templos com muita gente. Volta e
meia, em outras caminhadas,
dou um pulo naquela igreja, sei
que no mês de maio colocam uma
imagem de Nossa Senhora numa
mesinha ao lado da porta principal, gosto de ir lá, ver a santinha
que parece sorrir para todos, até
para mim.
Ali estivera, dois dias antes, levando o último recado de um irmão que acabara de morrer e me
pedira que colocasse uma flor
branca aos pés daquela imagem.
Fiz-lhe a vontade e fiz a minha
própria vontade, achando que tudo aquilo fazia sentido, a flor
branca, o irmão que acabara de
morrer, eu próprio atordoado,
precisando que alguém sorrisse
para mim.
Mas ali, naquele início de noite
e de chuva, a igreja estava lotada
e não encontrei a imagem na mesinha ao lado da porta principal
nem ao lado de porta alguma.
Senti-me ofendido, fui à sacristia
tomar satisfações. A moça que me
atendeu riu na minha cara. ""O
que o senhor veio fazer aqui? Não
viu que a imagem está no altar
principal, que hoje vamos coroar
Nossa Senhora, é fim de maio?"
Só então me lembrei de que era
maio e de que chegava o fim do
mês dedicado a Maria. Reparando bem, notei que a cerimônia
que ali se realizava não era um
casamento, muito comum neste
mês e naquele horário, as luzes
acesas, as bancadas cheias de flores, o órgão tocando. Havia, isso
sim, muitas crianças, muitas mocinhas sobretudo, e foi difícil conseguir um ângulo em que pudesse
ver a imagem lá no altar, os braços estendidos, o manto azul, o lábio que parecia sorrir.
Iam coroar Nossa Senhora.
Uma tradição piedosa do marianismo que certa parte da igreja,
de uns tempos para cá, se não
condenou formalmente, botou
em quarentena. Estava certo de
que não mais se coroava Nossa
Senhora no final de maio, eu próprio me esquecera da cerimônia,
embora meu primeiro contato,
contato para valer com uma igreja, tenha sido exatamente uma
coroação em final de maio, na
matriz de Nossa Senhora da
Guia, no alto do único morro do
bairro onde nasci.
Foi um alumbramento -diria
eu, se fosse poeta. Era a primeira
vez que participava de uma reunião noturna. Nem sabia direito
o que era aquilo, alguém que me
levaria para casa decidiu entrar
na igreja toda iluminada, onde
crianças cantavam: ""Vinde, vamos todos, com flores à Maria...".
Para falar a verdade, nunca antes entrara numa igreja, com exceção do dia do meu batismo,
quando eu ainda era aquilo que o
padre chamou ""o inocente Carlos".
Depois que deixei de ser o inocente Carlos, nunca mais pisei
numa igreja. Tinha medo delas.
Certa vez, passava de bonde por
Vila Isabel e vira um enterro entrando na matriz de Nossa Senhora de Lourdes, daí que pensava que as igrejas estavam abarrotadas de ataúdes, cheias de mortos, cheias de coisas mortas.
Mas, naquela noite de final de
maio, a igreja de N.S. da Guia estava fosforescente, cheia de luzes,
o som do órgão era generoso, alegre, e havia meninas vestidas de
anjinhos, com uma tiara branca
na testa, uma delas eu conhecia,
morava perto de mim e eu a considerava minha namorada, embora ela nem suspeitasse disso.
Muitos maios se seguiram, muitas namoradas também, logo depois fiz a primeira comunhão, entrei para o seminário, saí do seminário, perdi a fé e a compostura,
mas nunca esqueci aquele maio
distante, as luzes acesas, as meninas cantando, vinde, vamos todos...
E ali estava eu, tantos e tantos
anos depois, me abrigando da
chuva e vendo mocinhas que levavam uma bonita coroa de prata em direção ao altar iluminado,
para botar na cabeça da imagem
que me conhece porque sorri para
mim sempre que estou diante dela.
O som do órgão cresceu, bateram palmas, eu me surpreendi
batendo palmas, lá no fundo da
igreja, escondido como o peregrino fatigado de caminhar sem chegar a lugar algum.
A chuva tinha passado. O manobreiro que tomava conta dos
carros estacionados fechou o seu
guarda-chuva, era hora de voltar
à lagoa, recomeçando a caminhada interrompida. Havia um pouco de vento lá fora e dentro da
igreja havia luz, calor e música. Ia
ficando mais um pouco, mas
achei que seria hipocrisia continuar ali me abrigando do vento e
da chuva, embora tivesse batido
palmas para uma imagem que
sorria para mim. Batendo palmas
talvez pela minha coragem de estar ali, achando que, afinal, chegara aonde sempre quisera ficar.
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