São Paulo, quarta-feira, 31 de maio de 2006 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TELEVISÃO Série realça o lado positivo do velho "jeitinho brasileiro"
MARCELO COELHO
Celulares à vontade
nos presídios, ambulâncias superfaturadas, acordões no Congresso e
toda a ginga da deputada Ângela Guadagnin: o mundo da
mutreta, da impunidade e do
caixa 2 não tem muito por
que despertar orgulho nos
brasileiros, e nossa célebre
complacência com o "jeitinho" bem que poderia estar
com os dias contados.
Talvez pensando nisso, alguém teve o cuidado de frisar, no título da nova série de
documentários do canal Futura, que é do "O Bom Jeitinho Brasileiro" que se trata.
Com direção geral de Antônio Andrade, os 13 episódios
destacam pessoas comuns,
capazes de ensinar que "a
criatividade não nasce junto
de quem tem dinheiro ou
instrução", como diz o antropólogo Roberto da Matta,
consultor do programa.
No primeiro programa,
quarta passada, o sr. Gildásio
da Silva Santos foi um exemplo disso. Ele tem 57 anos,
dentes em mau estado, nunca conheceu o pai e a mãe, e
está há bom tempo sem emprego fixo. Mas não se aperta. Aproveita peças usadas de
computador, desmonta e remonta monitores e gabinetes e revende o que pode numa feira carioca. Não tem um
violão nem "uma nega chamada Teresa", mas carrega a
mercadoria num Fusca laranja de assoalho tão precário como sua atividade.
O espectador não fica indiferente ao seguir a longa jornada de seu Gildásio, que sai
de casa às 4h para armar sua
barraca na feira de São Cristóvão -o "shopping do cacareco", segundo um comerciante. Ou o "Breshopping",
como atesta a carteirinha da
associação dos vendedores.
Roupas velhas, telefones
do tempo de Carmem Miranda, peças de ventilador e
maquinaria obsoleta estão
ali como atestado de que o
brasileiro "sabe se virar" na
adversidade. A boa trilha de
Rodrigo Lima, com flauta,
violão e ritmos de chorinho
reciclados em timbres eletrônicos, contribui para o clima de brasilidade não muito
exaltada do programa.
Jeitinho? Há vários exemplos no cotidiano de Gildásio. Hábil na eletrônica, conseguiu evitar que sua cadela
pulasse o portão quando estava no cio: um fio eletrificado deu conta, bem à brasileira, da situação. O que não impediu um caso de improviso
e de mestiçagem bem ao gosto de algum Gilberto Freyre
do mundo canino. A cachorrinha, pequena, cruzou com
um enorme mastim de provável ascendência alemã.
Chamar tudo isso de "o
bom jeitinho brasileiro" não
deixa de ser, como no caso
dos computadores de Gildásio, uma forma simpática de
reciclar, em tempos difíceis,
o velho material de Gilberto
Freyre. Que talvez também
fosse um modo de rearranjo
intelectual, para o "bem", de
antigos preconceitos.
Tingido de verde-amarelo,
um cotidiano de precariedade, bricolagem e subdesenvolvimento universais se torna especialidade de um povo
que não se aperta e sempre
sorri, desde que não seja abatido por fuzilamento. Também no programa, sobram
sorrisos e faltam dentes.
O BOM JEITINHO BRASILEIRO Quando: quartas, às 22h30 Onde: Futura Texto Anterior: Cinema: Morre Shohei Imamura, pilar da nouvelle vague japonesa Próximo Texto: Futebol e música: Anhangabaú terá shows após jogos do Brasil Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |