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CONTARDO CALLIGARIS
Vidas bem vividas
Há vidas que despertam o aplauso. Elas merecem ser contadas, pois foram vividas sem medo
N
A SEMANA passada, o teatro
da Federação do Comércio
do Estado de São Paulo mudou de nome. Chama-se agora teatro Raul Cortez.
Na realidade, a mudança já tinha
acontecido na estréia da peça que
está atualmente em cartaz no teatro,
"Às Favas com os Escrúpulos", uma
comédia de Juca de Oliveira, com a
direção de Jô Soares e uma imperdível Bibi Ferreira. Ninguém melhor
que um ator como Jô Soares para dirigir uma grande atriz, para deixá-la
livre de dizer tanto (e de ser irresistivelmente engraçada) com uma
atuação quase pudica. (Aparte. Atua
também na peça Adriane Galisteu,
que é sempre julgada como se o fato
de ser apresentadora e modelo fosse
um handicap; pois é, ela está ótima).
Enfim, na estréia da peça, na sexta
retrasada, antes que começasse o espetáculo, foi projetado um breve filme de lembranças de Raul Cortez,
que morreu há pouco menos de um
ano, aos 73. No fim do filme, a gente
aplaudiu longamente. Logo depois,
aplaudimos a entrada em cena de
Bibi Ferreira.
No meu caso (e imagino que fosse
assim para muitos outros na platéia), não se tratava apenas do aplauso elogioso pela maestria da atriz
-esse, obviamente, veio no fim da
peça. As palmas iniciais me lembraram as que talvez ainda acolham, a
cada noite, a aparição de Paulo Autran na cena do "Avarento": um
aplauso que parece ser de agradecimento. Pelo quê?
Não sei se Diderot (no "Paradoxo
sobre o Comediante") tinha razão
ou não. Pode ser que, como ele propunha, o ator seja um intelectual
frio que silencia e controla suas paixões para estudar as expressões do
sentimento humano a fim de reproduzi-lo. Pode ser que, ao contrário, o
ator se esgote a cada vez, vivendo intensamente emoções que ele não
imita, mas das quais ele se apropria.
Tanto faz. É provável que não haja
regra, e a coisa dependa do ator, do
papel e do momento.
De qualquer forma, o ator se esgota ou se controla para nos oferecer o
espetáculo da diversidade e da complexidade de paixões que são as nossas e que, sem o ator, não saberíamos reconhecer. O ator, de uma maneira ou de outra, revela-nos a nós
mesmos. E podemos lhe ser gratos
por isso.
Mas há mais. Talvez, o aplauso
suscitado pelo breve filme sobre
Raul Cortez tivesse também outra
significação, igualmente presente
no aplauso da entrada em cena de
Bibi Ferreira ou de Paulo Autran
-os quais, claro, estão bem vivos entre nós (e se espera que assim continuem por muito tempo), mas numa
idade que encoraja a avaliação do caminho que eles percorreram. Talvez
trate-se, nesses casos, do aplauso
por uma vida bem vivida.
Por que, às vezes, estou a fim de
aplaudir uma vida? Esse tipo de
aplauso não expressa apenas a gratidão e o elogio reservados a quem se
dedicou generosamente aos outros
nem o encômio destinado a quem
deixou no mundo uma obra ou uma
marca duradouras. Tampouco estou
a fim de aplaudir porque uma vida
me parece ter alcançado uma forma
qualquer de bom êxito material ou
espiritual.
Tudo isso, claro, pode alimentar
minha admiração, mas o aplauso,
justamente por seu caráter teatral, é
desencadeado por algo mais, algo
que aparecia no pequeno filme sobre Raul Cortez e que poderia ser resumido assim: aquela vida vale a pena ser contada.
Não é fácil definir o que faz que
uma vida tenha essa qualidade estética ou poética que lhe dá, por assim
dizer, a grandeza e a dignidade de
um romance. Não é a felicidade nem
o sucesso, nem o caráter extraordinário dos eventos; uma vida pode
ser uma série de fracassos, mancadas e tristezas, pode também ser trivial e, no entanto, valer a pena ser
contada.
Talvez a qualidade poética de uma
vida que desperta o aplauso esteja
na sensação de que seu protagonista
foi animado por uma obstinada fidelidade ao desejo: seja qual for a distribuição das cartas pelo acaso ou
pelo destino, ele jogou bem porque
jogou sem medo de jogar.
Na hora de nos despedir de alguém que nos é querido, choramos
nossa perda, e é normal que seja assim. Mas deveríamos festejar, quando der, a "beleza" de sua vida. E chorar, quando for o caso, as vidas que
se perdem não pela morte, mas pela
morte-em-vida -as vidas, em suma,
dos que não conseguiram ser atores
de suas próprias vidas.
Esta coluna é escrita em homenagem a Octavio Frias de Oliveira, com
quem, infelizmente, ao longo destes
anos, apenas cruzei. Mas fiquei um
tempo lendo a história de sua vida.
ccalligari@uol.com.br
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