São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 2000


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SHOW/CRÍTICA
Febril, Elza Soares briga e brinca consigo mesma

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Elza Soares não se deixa convencer por pressupostos dias de glória. Inimiga de si própria, arranjou para si uma faringite na sexta-feira passada, quando estreava em São Paulo temporada de duas semanas (continua a partir desta sexta) daquele que ela chama o show mais bem produzido de sua história.
Ao seu redor havia o cenário aconchegante de Gringo Cardia e Suzane Queiroz, a direção teatralizada de José Miguel Wisnik e Cardia, os figurinos mulher-violão de Cao Albuquerque... Mas não era o bastante. As duas grandes estrelas do show, Elza Soares e sua voz, fizeram beicinho.
Brincando de gato e rato consigo mesma, ela entrou fogosa, embora aparentemente tensa, cantando Zeca Pagodinho em versão mínima, a voz e o samba-jazz raspando nas orelhas dos fãs.
Recebeu aplausos com ar de madona sofredora e partiu logo para dois dos grandes momentos do show: "Bambino", tema atemporal de Ernesto Nazareth letrado por Wisnik, e a soberba "Comida e Bebida", de Wisnik com o homem de teatro José Celso Martinez Corrêa, de discursos de que tudo o que importa na vida é comida e bebida.
"Fadas", de Luiz Melodia, homenageou Astor Piazzolla enquanto Elza se cantava cega em tiroteio. Até aí se podia nem atentar para que um vulcão interior viesse convulsionando a cantora.
"Meu Guri", de Chico Buarque, mudaria o tom. Tornou-se peça de força no repertório da cantora, das coisas mais intensas que se tem cantado em muitos anos no Brasil. Esfumaçando a fronteira intransponível entre arte e vida, ela chorou, engasgou, lacrimejou, soluçou, dividida entre o sofrimento e a malandragem -quanto daquilo é dor, quanto daquilo é teatro? Sabe Elza...
Mas, bem, havia a faringite (além da banda pouco entrosada e do repertório às vezes solene demais). "Haiti", de Caetano e Gil, marcou, com sua letra pesada, dolorida, o ponto em que Elza jogava a toalha. A voz irrigou-se para as dores da faringe, perdeu do instrumental, perdeu o rebolado (só a voz, porque nas cadeiras ela ainda continuaria a mostrar o que vale uma bunda do Brasil pré-era das bundas).
A partir daí, capitalizou as dores ("estou queimando em febre", "é minha obrigação"), fez sinal da cruz para a garganta, cantou "A Macumba da Nega", exagerou no teatro bêbado de "Lama" (mais uma jóia em sua voz, rouca ou não), desistiu de cantar "Ziriguidum" (seus malabarismos seriam mesmo demais para a voz naquele dia debilitada), deixou claro no bis de "Língua" que precisava ir dormir urgentemente.
Saiu deixando no ar dois pontos de exclamação existenciais: que quem se relaciona entre amor e ódio com a vida não deixa nunca de extravasá-lo para a arte (poderia ser sua noite de glória, ela não permitiu) e que artistas são, como Elza, seres de costas nuas, musculosas e carcaça feita de muita carne e osso.


Dura na Queda
   
Artista: Elza Soares
Onde: teatro Renaissance (al. Santos, 2.233, tel. 0/xx/11/3069-2233)
Quando: sexta e sábado, às 21h30, e domingo, às 19h
Quanto: R$ 25 ou R$ 62 (ingresso e jantar)




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