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SHOW/CRÍTICA
Febril, Elza Soares briga e brinca consigo mesma
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Elza Soares não se deixa convencer por pressupostos dias de
glória. Inimiga de si própria, arranjou para si uma faringite na
sexta-feira passada, quando estreava em São Paulo temporada
de duas semanas (continua a partir desta sexta) daquele que ela
chama o show mais bem produzido de sua história.
Ao seu redor havia o cenário
aconchegante de Gringo Cardia e
Suzane Queiroz, a direção teatralizada de José Miguel Wisnik e
Cardia, os figurinos mulher-violão de Cao Albuquerque... Mas
não era o bastante. As duas grandes estrelas do show, Elza Soares e
sua voz, fizeram beicinho.
Brincando de gato e rato consigo mesma, ela entrou fogosa, embora aparentemente tensa, cantando Zeca Pagodinho em versão
mínima, a voz e o samba-jazz raspando nas orelhas dos fãs.
Recebeu aplausos com ar de
madona sofredora e partiu logo
para dois dos grandes momentos
do show: "Bambino", tema atemporal de Ernesto Nazareth letrado
por Wisnik, e a soberba "Comida
e Bebida", de Wisnik com o homem de teatro José Celso Martinez Corrêa, de discursos de que
tudo o que importa na vida é comida e bebida.
"Fadas", de Luiz Melodia, homenageou Astor Piazzolla enquanto Elza se cantava cega em tiroteio. Até aí se podia nem atentar
para que um vulcão interior viesse convulsionando a cantora.
"Meu Guri", de Chico Buarque,
mudaria o tom. Tornou-se peça
de força no repertório da cantora,
das coisas mais intensas que se
tem cantado em muitos anos no
Brasil. Esfumaçando a fronteira
intransponível entre arte e vida,
ela chorou, engasgou, lacrimejou,
soluçou, dividida entre o sofrimento e a malandragem -quanto daquilo é dor, quanto daquilo é
teatro? Sabe Elza...
Mas, bem, havia a faringite
(além da banda pouco entrosada
e do repertório às vezes solene demais). "Haiti", de Caetano e Gil,
marcou, com sua letra pesada,
dolorida, o ponto em que Elza jogava a toalha. A voz irrigou-se para as dores da faringe, perdeu do
instrumental, perdeu o rebolado
(só a voz, porque nas cadeiras ela
ainda continuaria a mostrar o que
vale uma bunda do Brasil pré-era
das bundas).
A partir daí, capitalizou as dores
("estou queimando em febre", "é
minha obrigação"), fez sinal da
cruz para a garganta, cantou "A
Macumba da Nega", exagerou no
teatro bêbado de "Lama" (mais
uma jóia em sua voz, rouca ou
não), desistiu de cantar "Ziriguidum" (seus malabarismos seriam
mesmo demais para a voz naquele dia debilitada), deixou claro no
bis de "Língua" que precisava ir
dormir urgentemente.
Saiu deixando no ar dois pontos
de exclamação existenciais: que
quem se relaciona entre amor e
ódio com a vida não deixa nunca
de extravasá-lo para a arte (poderia ser sua noite de glória, ela não
permitiu) e que artistas são, como
Elza, seres de costas nuas, musculosas e carcaça feita de muita carne e osso.
Dura na Queda
Artista: Elza Soares
Onde: teatro Renaissance (al. Santos,
2.233, tel. 0/xx/11/3069-2233)
Quando: sexta e sábado, às 21h30, e
domingo, às 19h
Quanto: R$ 25 ou R$ 62 (ingresso e
jantar)
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