|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Na máquina do tempo e uma noite no Scala
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
A folhinha pendurada no hotel marcava uma data: 7 de janeiro de 1975. Desde dezembro
andava de lá para cá, enfrentando as estradas e o mau tempo do norte da Itália. Chegara
a Milão pela manhã, deixando
atrás de mim uma Veneza ensolarada mas triste, com suas
chagas recentes e seus palácios
fatigados. Tencionava dormir
o dia inteiro, mas o porteiro
me avisou que havia Scala: se
corresse, ainda poderia comprar uma galeria no velho teatro. O programa tentava: uma
"La Bohème" em comemoração ao cinquentenário da morte de Puccini. Elenco da pesada, com Mirella Freni no papel
principal, regência de Herbert
Von Karajan, direção geral de
Franco Zefirelli.
O hotel não ficava longe da
"piazza" onde outrora existira
a igreja de Santa Maria della
Scala, em cuja área o arquiteto
Piermarini construiu o teatro
que se tornou o mais famoso
do mundo. Não perdi tempo e
paciência esperando um táxi:
fui a pé.
Deixei o ano da graça de
1975 e, por uma curiosa e indolor máquina do tempo, penetrei naquele "piccolo mondo"
que parou no espaço e ficou como um oásis da bela época encravado nesta bruta época que
é a nossa.
Ao enfrentar o bilheteiro, já
não estava mais em 1975, mas
em 1900: o homem usava costeletas, bigodes, colarinho e
idéias daquele ano. Não vendia mais nada. Nem que lhe
desse a Amazônia como suborno poderia me arranjar uma
galeria.
Quanto às poltronas, bem,
havia cambistas pelas imediações. Farejaram o forasteiro
que ali estava, com aflições na
alma e dólares no bolso.
Um deles, com cara de sobrevivente da batalha de Caporetto, diminuiu eficientemente as
duas coisas: fiquei com menos
aflições e dólares, mas tinha
agora dois bilhetes amarelos
que me davam direito a duas
poltronas vermelhas na imensa platéia - dourada e cheia
de sons - do Teatro alla Scala
de Milão. E, além dos bilhetes,
ganhei o direito de participar
do clima de exaltação que rondava o espetáculo.
Oficialmente, a direção do
teatro não comunicara nada,
mas se sabia que La Freni não
iria cantar. Ela estaria "ammalata", doente. Faz parte da
tradição as divas ficarem
doentes antes das grandes estréias. Contudo, rosnava-se
que a doença era falsa. La Freni não queria cantar sob a direção de Von Karajan. E dentro da rosnação geral surgia
uma maledicência subalterna:
maestro e cantora haviam tido
um caso tempestuoso, cujo
"gran finale", em Viena, quase
terminara em morte - como
nas óperas.
Conhecia Mirella Freni de
disco e achei que era muita cocada ouvi-la de corpo e voz
presentes, sob a direção de Von
Karajan -já o vira reger um
festival em Salzburgo. E estava
disposto a pedir um abatimento nas entradas quando um
"carabiniere", que àquela altura da manhã já policiava a fila
que se formava para as galerias, garantiu-me que Herbet
Von Karajan também não regeria a ópera. E pelos mesmos
motivos: preferia quebrar a batuta a ter de trabalhar com La
Freni. Voltei à bilheteria e pedi
garantias: afinal, haveria mesmo uma ópera ou o Scala escalaria o Mazzaroppi? O homem
respondeu dignamente: o "signor" Mazzaroppi não cantaria
naquela noite, essa era a única
certeza que me dava. Nem havia certeza se cantaria nos dois
próximos anos. De resto - como na Itália em geral e na ópera em particular-, tudo era
possível.
No final da tarde, a portaria
telefonou para o meu quarto
avisando-me que o rádio acabara de anunciar: La Freni estava mesmo "ammalata", Herbert Von Karajan não regeria.
"E quem cantará, afinal?" -
perguntei. Uma romena, Ileana Cortrubas, que precisava
estourar. O maestro seria
Georges Prête. Os dois estavam
dispostos a fazer o público esquecer La Freni e Von Karajan. Seria um duelo com a glória.
A folhinha continuava marcando o ano de 1975, mas, a
qualquer momento, o cabo
submarino daria a notícia: o
Titanic acabara de bater num
iceberg. E, em Sarajevo, um estudante matara um arquiduque.
A nobreza milanesa compareceu unida. Não é parecida
com o seu ramal romano, que é
constituído de nobres decadentes, mas com papas na família. Em Milão, a nobreza é
industrial: os nomes não lembram papas mas aperitivos,
pneus e automóveis. Martinis,
Pirellis e Ferraris servem de
moldura aos Agnellis -os novos reis da Itália.
No dia seguinte, os jornais de
toda a Europa comentariam
aquela noite no Scala: "Uma
das mais perfeitas de sua história" -de minha parte, voltei
para o hotel assombrado comigo mesmo. A "nebbia" embaçava os lampiões, o asfalto úmido me conduzia para o hotel e
para o ano da graça de 1975.
Por um momento parei num
cruzamento e fiquei indeciso se
devia continuar ou não. Deixara um mundo defunto, com
suas Mimis tuberculosas e suas
Musettas levianas.
No fim da praça, a silhueta
neoclássica do Scala preparava-se para dormir o seu sono
de duendes e sons. No Rio,
àquela hora, devia estar fazendo uma noite quente e perfumada pelo mar de verão. Tive
medo de não encontrar os escombros do mundo em que vivia. Na folhinha do hotel, já
havia outra data, 8 de janeiro
de 1975. Mas desconfiei que em
mim não havia o mesmo homem.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|