São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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Na máquina do tempo e uma noite no Scala

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial


A folhinha pendurada no hotel marcava uma data: 7 de janeiro de 1975. Desde dezembro andava de lá para cá, enfrentando as estradas e o mau tempo do norte da Itália. Chegara a Milão pela manhã, deixando atrás de mim uma Veneza ensolarada mas triste, com suas chagas recentes e seus palácios fatigados. Tencionava dormir o dia inteiro, mas o porteiro me avisou que havia Scala: se corresse, ainda poderia comprar uma galeria no velho teatro. O programa tentava: uma "La Bohème" em comemoração ao cinquentenário da morte de Puccini. Elenco da pesada, com Mirella Freni no papel principal, regência de Herbert Von Karajan, direção geral de Franco Zefirelli.
O hotel não ficava longe da "piazza" onde outrora existira a igreja de Santa Maria della Scala, em cuja área o arquiteto Piermarini construiu o teatro que se tornou o mais famoso do mundo. Não perdi tempo e paciência esperando um táxi: fui a pé.
Deixei o ano da graça de 1975 e, por uma curiosa e indolor máquina do tempo, penetrei naquele "piccolo mondo" que parou no espaço e ficou como um oásis da bela época encravado nesta bruta época que é a nossa.
Ao enfrentar o bilheteiro, já não estava mais em 1975, mas em 1900: o homem usava costeletas, bigodes, colarinho e idéias daquele ano. Não vendia mais nada. Nem que lhe desse a Amazônia como suborno poderia me arranjar uma galeria.
Quanto às poltronas, bem, havia cambistas pelas imediações. Farejaram o forasteiro que ali estava, com aflições na alma e dólares no bolso.
Um deles, com cara de sobrevivente da batalha de Caporetto, diminuiu eficientemente as duas coisas: fiquei com menos aflições e dólares, mas tinha agora dois bilhetes amarelos que me davam direito a duas poltronas vermelhas na imensa platéia - dourada e cheia de sons - do Teatro alla Scala de Milão. E, além dos bilhetes, ganhei o direito de participar do clima de exaltação que rondava o espetáculo.
Oficialmente, a direção do teatro não comunicara nada, mas se sabia que La Freni não iria cantar. Ela estaria "ammalata", doente. Faz parte da tradição as divas ficarem doentes antes das grandes estréias. Contudo, rosnava-se que a doença era falsa. La Freni não queria cantar sob a direção de Von Karajan. E dentro da rosnação geral surgia uma maledicência subalterna: maestro e cantora haviam tido um caso tempestuoso, cujo "gran finale", em Viena, quase terminara em morte - como nas óperas.
Conhecia Mirella Freni de disco e achei que era muita cocada ouvi-la de corpo e voz presentes, sob a direção de Von Karajan -já o vira reger um festival em Salzburgo. E estava disposto a pedir um abatimento nas entradas quando um "carabiniere", que àquela altura da manhã já policiava a fila que se formava para as galerias, garantiu-me que Herbet Von Karajan também não regeria a ópera. E pelos mesmos motivos: preferia quebrar a batuta a ter de trabalhar com La Freni. Voltei à bilheteria e pedi garantias: afinal, haveria mesmo uma ópera ou o Scala escalaria o Mazzaroppi? O homem respondeu dignamente: o "signor" Mazzaroppi não cantaria naquela noite, essa era a única certeza que me dava. Nem havia certeza se cantaria nos dois próximos anos. De resto - como na Itália em geral e na ópera em particular-, tudo era possível.
No final da tarde, a portaria telefonou para o meu quarto avisando-me que o rádio acabara de anunciar: La Freni estava mesmo "ammalata", Herbert Von Karajan não regeria. "E quem cantará, afinal?" - perguntei. Uma romena, Ileana Cortrubas, que precisava estourar. O maestro seria Georges Prête. Os dois estavam dispostos a fazer o público esquecer La Freni e Von Karajan. Seria um duelo com a glória.
A folhinha continuava marcando o ano de 1975, mas, a qualquer momento, o cabo submarino daria a notícia: o Titanic acabara de bater num iceberg. E, em Sarajevo, um estudante matara um arquiduque.
A nobreza milanesa compareceu unida. Não é parecida com o seu ramal romano, que é constituído de nobres decadentes, mas com papas na família. Em Milão, a nobreza é industrial: os nomes não lembram papas mas aperitivos, pneus e automóveis. Martinis, Pirellis e Ferraris servem de moldura aos Agnellis -os novos reis da Itália.
No dia seguinte, os jornais de toda a Europa comentariam aquela noite no Scala: "Uma das mais perfeitas de sua história" -de minha parte, voltei para o hotel assombrado comigo mesmo. A "nebbia" embaçava os lampiões, o asfalto úmido me conduzia para o hotel e para o ano da graça de 1975. Por um momento parei num cruzamento e fiquei indeciso se devia continuar ou não. Deixara um mundo defunto, com suas Mimis tuberculosas e suas Musettas levianas.
No fim da praça, a silhueta neoclássica do Scala preparava-se para dormir o seu sono de duendes e sons. No Rio, àquela hora, devia estar fazendo uma noite quente e perfumada pelo mar de verão. Tive medo de não encontrar os escombros do mundo em que vivia. Na folhinha do hotel, já havia outra data, 8 de janeiro de 1975. Mas desconfiei que em mim não havia o mesmo homem.



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