São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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CINEMA - ESTRÉIA
O 4º poder

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A grande contribuição do grego Constantin Costa-Gavras ao cinema é, possivelmente, sua capacidade de expor, de maneira simples e didática, os problemas gerados pelas ditaduras de esquerda e de direita.
Como elas já não existem, ou quase, Costa-Gavras voltou-se agora para o que se pode chamar de ditadura democrática: o brutal poder da mídia (ou seja, a TV) de moldar os acontecimentos.
Para tanto, Costa-Gavras realizou um "remake" de "A Montanha dos Sete Abutres" (1951), em que Billy Wilder narrava os esforços de um repórter de jornal (Kirk Douglas) para transformar o desabamento de uma mina em caso nacional e, assim, voltar a trabalhar em um grande veículo.
Exatamente o mesmo problema de Max Brackett (Dustin Hoffman), repórter de TV em baixa, confinado ao noticiário local.
A sorte sorri para Brackett: quando faz uma anódina reportagem sobre um museu com dificuldades financeiras, o prédio é invadido pelo ex-segurança Sam Baily (John Travolta). Armado, Baily quer, basicamente, falar com a diretora da instituição e retomar seu emprego.
Como nesse exato momento o prédio é visitado por um grupo de crianças, a entrevista transforma-se em sequestro. E a modesta reportagem de Brackett transforma-se num "caso nacional".
A partir daí, a mídia entra em questão, pois Brackett trata de controlar Baily, a fim de que a reportagem renda pelo maior tempo possível.
Logo torna-se uma espécie de assessor de marketing do sequestrador, que não passa de um pai de família tão burro quanto desnorteado. Ou seja, trata-se de ensinar Baily a construir sua imagem (o mesmo, em linhas gerais, que "marketeiros" costumam fazer com políticos).
Do outro lado, existe a oposição: a polícia, disposta a fazer picadinho do sequestrador, e um famoso âncora de TV (Alan Alda), que tenta cavar uma boquinha no grande caso e, se possível, fazer picadinho de Brackett.
As principais virtudes de Costa-Gavras em seus melhores filmes ("Z" e "A Confissão") estão ali: uma grande clareza de exposição, uma grande capacidade de reduzir um problema complexo a seus dados mínimos, de maneira a comunicá-los com o mínimo de ambiguidade possível a seu espectador.
O problema, com Costa-Gavras, é que suas maiores qualidades são, igualmente, seus grandes defeitos.
É fato que a televisão, a cada caso que narra, manipula a imagem: escolhe os entrevistados, seleciona os trechos mais adequados de suas falas etc. Os jornais também fazem isso, por certo, embora não tenham a seu favor as imagens (e o peso de verdade que elas transmitem).
A questão, porém, é outra: seria o cinema tão diferente da TV? Sabe-se que não. Aliás, a idéia de montagem (seleção de material, escolha de determinada realidade a narrar) vem do cinema. A TV apenas herdou-a.
O problema não é, portanto, praticar um jornalismo (de TV ou não) mais ou menos verdadeiro, mais ou menos humano. E sim: como viver em um mundo dominado pelas imagens? Ou ainda: como estabelecer a verdade -ou, mais modestamente, os fatos- num mundo em que já é tão difícil distinguir os fatos de suas versões?
É a partir daí que o didatismo, a clareza e a capacidade de impacto de Costa-Gavras tendem a se auto-anular. Ao reduzir um problema complexo à sua expressão mais simples, em vez de permitir que as várias versões se friccionem e se choquem e que nos seja dado ver o caos das coisas -como, digamos, faz Orson Welles em "Cidadão Kane"-, "O Quarto Poder" termina nos oferecendo um mundo "prêt-à-porter": ajustado, organizado e lógico, mas tão superficial quanto aquilo que ataca.

Filme: O Quarto Poder Produção: EUA, 1997 Direção: Constantin Costa-Gavras Com: John Travolta, Dustin Hoffman Quando: a partir de hoje, nos cines Gazetinha, Belas Artes - sala Aleijadinho, Morumbi 5 e circuito


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