São Paulo, sexta, 31 de julho de 1998

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TUDO É MÍDIA
Aparecemos, logo existimos

CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Lembro de Humphrey Bogart, orientando o microfone do aparelho telefônico na direção das rotativas que começam a imprimir o jornal de amanhã.
Lembro da pergunta inquieta do malandro (com coisas para esconder) que está na linha, escutando: "Mas o que é esse barulho?". E Bogart responde: "A imprensa, baby, e não tem nada que você possa fazer para pará-la". Só não consigo me lembrar do filme. Talvez fosse "The Harder They Fall", de Mark Robson.
Mas, de repente, surge a dúvida: é mesmo Bogart? Quem sabe algum leitor me ajude. De qualquer forma, há uma série de filmes que celebram o jornalista como herói da democracia ou a mídia como guardiã de nossas liberdades.
Exemplo por excelência: "Todos os Homens do Presidente", de Pakula, que festeja os jornalistas do "Washington Post" que derrubaram Nixon.
Mas, de "Cidadão Kane" a "Rede de Intrigas", de Sidney Lumet, a mídia pode também aparecer abjeta, serva de um poder escuso ou escrava de sua própria ambição de sucesso.
Necessidade funesta
Essa ambivalência não é surpreendente. Afinal, a modernidade democrática é o reino da opinião pública. Portanto, aquele que mexe com a dita opinião parece deter um poder singular.
Ele pode, à primeira vista, adulterá-la segundo seus interesses ou esclarecê-la para que ela se funda na verdade dos fatos. Então o jornalista é ou glorioso ou infame.
Nessa oposição em preto-e-branco, "O Quarto Poder" vai ser vendido como um filme crítico do poder da mídia: mais uma denúncia da funesta necessidade de conquistar pontos de audiência (temática já central em "Rede de Intrigas" 20 anos atrás).
É esse, aliás, o mea-culpa atual da mídia americana: a necessidade de divertir o público comprometeria a capacidade de informar.
Felizmente, o filme oferece muito mais do que isso. Sam -o seqüestrador (Travolta)- é apresentado por Max, o repórter (Hoffman), como um coitado que perdeu o emprego e não sabe mais o que fazer para prover as necessidades de sua família.
Portanto, ele não pode ser morto pelo FBI se sua imagem pública, assim construída por Max, não piorar um pouquinho. Disso vai se encarregar o cruel Hollander (Alda). Mas, na verdade, Sam é mesmo um maluco que seqüestra crianças, para maior angústia das famílias, e um assassino, embora por acidente.
Circo
Não se trata de decidir quem tem razão ou quem apresenta a versão correta dos fatos. Melhor constatar com o filme que, no e pelo circo da mídia, vozes diferentes se endereçam a um público que é de fato um verdadeiro júri popular permanente.
Restaria se perguntar por que, afinal, os espectadores da mídia se interessariam tanto por Sam, seu sequestro esdrúxulo e sua história banal e triste.
Do mesmo jeito, em "O Show da Vida" ("The Truman Show"), que deve estrear no Brasil em setembro, a banalidade do cotidiano de uma vida se torna show televisivo permanente. Mesma questão: por que os espectadores se interessariam?
É inútil voltar ao livro notável de Walker Percy, "The Moviegoer". Nesse romance de 1960, o protagonista tem um grande inimigo: a cotidianidade. E um pequeno remédio, que ele chama de a certificação: quando algo de nossa vida (os lugares onde a gente mora, por exemplo) aparece em um filme, nossa vida está certificada, tem um lugar e uma pertinência.
Não cansamos então de querer nos encontrar na tela, pois parece que é esse nosso jeito (o jeito moderno) de confirmar que existimos.


E-mail: ccalligari@aol.com



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