|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TUDO É MÍDIA
Aparecemos, logo existimos
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha
Lembro de Humphrey Bogart,
orientando o microfone do aparelho telefônico na direção das rotativas que começam a imprimir o
jornal de amanhã.
Lembro da pergunta inquieta do
malandro (com coisas para esconder) que está na linha, escutando:
"Mas o que é esse barulho?". E
Bogart responde: "A imprensa,
baby, e não tem nada que você
possa fazer para pará-la". Só não
consigo me lembrar do filme. Talvez fosse "The Harder They
Fall", de Mark Robson.
Mas, de repente, surge a dúvida:
é mesmo Bogart? Quem sabe algum leitor me ajude. De qualquer
forma, há uma série de filmes que
celebram o jornalista como herói
da democracia ou a mídia como
guardiã de nossas liberdades.
Exemplo por excelência: "Todos os Homens do Presidente",
de Pakula, que festeja os jornalistas do "Washington Post" que
derrubaram Nixon.
Mas, de "Cidadão Kane" a
"Rede de Intrigas", de Sidney
Lumet, a mídia pode também aparecer abjeta, serva de um poder escuso ou escrava de sua própria
ambição de sucesso.
Necessidade funesta
Essa ambivalência não é surpreendente. Afinal, a modernidade democrática é o reino da opinião pública. Portanto, aquele que
mexe com a dita opinião parece
deter um poder singular.
Ele pode, à primeira vista, adulterá-la segundo seus interesses ou
esclarecê-la para que ela se funda
na verdade dos fatos. Então o jornalista é ou glorioso ou infame.
Nessa oposição em preto-e-branco, "O Quarto Poder"
vai ser vendido como um filme
crítico do poder da mídia: mais
uma denúncia da funesta necessidade de conquistar pontos de audiência (temática já central em
"Rede de Intrigas" 20 anos
atrás).
É esse, aliás, o mea-culpa atual
da mídia americana: a necessidade
de divertir o público comprometeria a capacidade de informar.
Felizmente, o filme oferece muito mais do que isso. Sam -o seqüestrador (Travolta)- é apresentado por Max, o repórter
(Hoffman), como um coitado que
perdeu o emprego e não sabe mais
o que fazer para prover as necessidades de sua família.
Portanto, ele não pode ser morto
pelo FBI se sua imagem pública,
assim construída por Max, não
piorar um pouquinho. Disso vai se
encarregar o cruel Hollander (Alda). Mas, na verdade, Sam é mesmo um maluco que seqüestra
crianças, para maior angústia das
famílias, e um assassino, embora
por acidente.
Circo
Não se trata de decidir quem tem
razão ou quem apresenta a versão
correta dos fatos. Melhor constatar com o filme que, no e pelo circo da mídia, vozes diferentes se
endereçam a um público que é de
fato um verdadeiro júri popular
permanente.
Restaria se perguntar por que,
afinal, os espectadores da mídia se
interessariam tanto por Sam, seu
sequestro esdrúxulo e sua história
banal e triste.
Do mesmo jeito, em "O Show
da Vida" ("The Truman
Show"), que deve estrear no Brasil em setembro, a banalidade do
cotidiano de uma vida se torna
show televisivo permanente. Mesma questão: por que os espectadores se interessariam?
É inútil voltar ao livro notável de
Walker Percy, "The Moviegoer".
Nesse romance de 1960, o protagonista tem um grande inimigo: a
cotidianidade. E um pequeno remédio, que ele chama de a certificação: quando algo de nossa vida
(os lugares onde a gente mora, por
exemplo) aparece em um filme,
nossa vida está certificada, tem
um lugar e uma pertinência.
Não cansamos então de querer
nos encontrar na tela, pois parece
que é esse nosso jeito (o jeito moderno) de confirmar que existimos.
E-mail: ccalligari@aol.com
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|