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CONTARDO CALLIGARIS
Por que Orfeu fica no morro
Na sexta -feira passada, "Orfeu", de Cacá Diegues, estreou
em Nova York. À noite, a sala do
Lincoln Plaza Cinema estava
cheia, apesar de a época do ano
não ser das melhores, com a cidade ainda vazia pelas férias de verão. O filme entusiasmou e ganhou aplausos.
Eu fiquei sentado, deixando
passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos
minutos, quando todos gritam,
apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de
uma perda irreparável, que não
poderíamos deixar acontecer.
Perda de quê?
Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série
"Seis Histórias Brasileiras", que o
GNT transmitiu duas semanas
atrás. Era "Um Dia Qualquer", de
Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de
abacaxis na praia de Copacabana,
e de suas palavras surpreendentes
-sobre o que é ser negro, sobre
seu corpo ou sobre a mulher brasileira.
Ora, no filme de Cacá Diegues,
alguém pergunta a Orfeu por que
ele não aproveita seu sucesso para
ir embora do morro. Orfeu não
responde e, naturalmente, fica.
Ele poderia dizer, imagino, que o
morro é o mundo do qual ele quer
ser a voz. Apesar do tráfico de
drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.
Essa resposta (imaginária) de
Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que
tanto a alegria de viver quanto a
capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.
É um traço bem estabelecido de
nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação
para os derrotados. Quer seja um
acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando
nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês
e do miserável".
Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso,
mas em troca disso eu admiro e
invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".
Mas cuidado: nessa vinheta, que
parece feita só para aliviar a culpa
dos tubarões, talvez haja mesmo
alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira.
Então qual é a verdade?
Lembra a história do mestre e
do escravo? Hegel imaginava que
o escravo, trabalhando, acabaria
sendo o único a saber lidar com o
mundo, fabricar as coisas, tirar
leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do
escravo. Aí a relação de forças se
inverteria.
As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre
não ficou ocioso: ao contrário, ele
se especializou nas tarefas mais
rentáveis e consolidou seu poder.
Ele não está cansado nem se tornou incompetente.
Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo
relevante que o mestre perdeu. De
uma certa forma, ele ficou com a
vida concreta. É na cultura dos
pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais
abstrata por (e para) se resumir
na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para
se deter em questões, diferenças e,
eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração
para justificar as equivalências
entre coisas, pessoas e valores que
permitem o bom funcionamento
do mercado e da produção.
Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as
palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida
concreta ficou com os derrotados.
Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e
na cultura dos mestres.
Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se
seus derrotados fossem todos
perfeitamente integrados? Claro,
cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam
também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.
E o que seria o Brasil sem seus
excluídos? Foi a idéia dessa perda
que me deixou comovido no fim
do filme de Cacá Diegues. Você
pode perguntar: "Como assim?
Seria uma perda se não houvesse
mais excluídos?".
Explico-me. Seria um desastre
se Orfeu e Apolônio morressem
de bala ou de fome, exterminados
pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira
Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se
isso acontecesse, nossa sociedade
não seria mais nada, apenas uma
selva de Lalaus (mais ou menos
bem-sucedidos).
P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi
precedida por um longo e bonito
artigo de Caetano no "The New
York Times". É possível, e vale a
pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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