São Paulo, segunda-feira, 31 de outubro de 2005

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NELSON ASCHER

Relativismo cultural e multiculturalismo

"Cultura " é um termo quase infinitamente maleável. Trata-se de uma palavra que, na boca de usuários distintos, tanto faz se leigos ou estudiosos profissionais, tem significações, valores, desdobramentos e ressonâncias às vezes convergentes, às vezes inconciliáveis, mas, em geral, diferentes.
Sua origem ou, pelo menos, até onde se possa saber, seu sentido primitivo parece se relacionar com a criação, descoberta ou invenção da agricultura e, antes de se aplicar aos humanos, a expressão designava (como quando se fala, ainda agora, em "cultura da mandioca" ou "cultura do café") a disciplina imposta por nossos ancestrais à Mãe Terra.
Etimologicamente, portanto, nós é que, de início, cultivamos o meio ambiente, nós o educamos e, transformando, através do trabalho, do lavor, o mato em lavoura, ensinamos a natureza a nos servir. A extensão da palavra "cultura" aos homens constitui um exemplar acabado de metáfora, pois implica uma seqüência de "comos" ocultos: "Tal ou qual indivíduo, que era naturalmente selvagem (COMO a selva), após ser trabalhado COMO a terra, tornou-se cultivado COMO um terreno lavrado".
Uma vez que se metaforize um vocábulo, processo este semelhante à neoplasia ou à fissão nuclear, ninguém mais (exceto, talvez, uns poucos poetas) sabe controlá-lo, e sua acepção, distanciando-se da raiz, modifica-se, ao sabor do uso, sem cessar. Apesar de -ou graças a- tal proliferação desvairada de significados, o substantivo em questão se encontra no centro das principais controvérsias contemporâneas.
Mal se constatou a diversidade cultural do planeta e eis que cada cultura individual, outrora isolada e protegida pela geografia ou pela história, vem sendo, em decorrência da globalização, confrontada com todas as restantes. Essa interpenetração acelerada, a despeito de compreensíveis aspirações idealistas de harmonia, não tem como (ou por que) não ser competitiva, ou melhor, declarando-o com todas as letras, conflituosa e violenta.
O darwinismo fora de lugar que, transplantado metaforicamente da biologia para as humanidades, menos desencadeou do que contribuiu para revestir de respeitabilidade conceitual o narcisismo exclusivista de certos grupos, de determinadas etnias e nações, caiu, com toda justiça, depois de se associar a práticas eugênicas e exterminacionistas, em descrédito não só científico. Ocorre que, ao contrário de suas deformações políticas, o "insight" do próprio Darwin não envolvia, no fundo, juízos de valor. Embora a idéia de "evolução" sugira uma hierarquia inerente, seu formulador, ao elaborar uma teoria a respeito de como as espécies se alteravam ou se alternavam, referia-se não à superioridade pura e simples de uma sobre a rival, mas sim à sua superior adequação no contexto delimitado de circunstâncias cambiantes.
Por herético que soe, a lógica de seu raciocínio, desde que rigorosamente apartada de veleidades valorativas, segue sendo um instrumento capaz seja de elucidar como várias culturas justapostas interagem, seja de auxiliar a prever os possíveis resultados de sua eventual concorrência. A pergunta a se colocar não é, assim, se esta cultura é ou não melhor do que aquela. Nisto, os relativistas estão certos, já que, como no casos dos milhares de línguas que existem, nenhuma apresenta menos complexidade, riqueza, limitações do que as demais. O que não quer dizer que, selecionada uma meta explicitamente desejável, todas conduzam ao destino de modo igual.
Por exemplo, uma visão de mundo que alivie as angústias geradas pela consciência da morte não produz necessariamente uma expectativa de vida mais prolongada. As propostas igualitárias de justiça social raramente se traduzem em coletividades abastadas. Nem a opulência material generalizada se converte em autêntica solidariedade, atenua conflitos interpessoais ou resolve ansiedades subjetivas. Tampouco basta a uma sociedade ser pacífica para deixar de ser agredida pelas que não o são. Um viés inesperado desvia boas intenções rumo a conseqüências catastróficas, direitos coletivos se degradam amiúde em agravos pessoais e/ou vice-versa. O leite que supre os europeus nórdicos de cálcio causa, no trato digestivo de ameríndios ou asiáticos orientais, cólicas insuportáveis. O remédio que cura minha infecção pode provocar um choque anafilático letal em meu vizinho. E assim por diante.
Enquanto o relativismo cultural meramente nos lembre da inexistência de uma espécie de padrão universal, de um paradigma absoluto que nos permita emitir julgamentos conclusivos acerca das inúmeras culturas que há, ele, valendo-se do ceticismo inteligente, desempenha um papel saudável e contribui para a autocompreensão da humanidade. Quando, todavia, cristalizando-se num tabu que proscreve o exame sistemático de causas e efeitos específicos, dita que toda análise comparativa é "etnocêntrica" interessada, mal-intencionada etc., então degenera numa nova forma de obscurantismo.
E o que vale para o relativismo, vale também para o multiculturalismo. Caso se limite a um programa pragmático voltado para a redução plausível de entrechoques desnecessários de diferenças desimportantes, ele cumpre uma função cujos méritos não convém menosprezar. Tão logo passa, no entanto, a impor o dogma contra-intuitivo e empiricamente inverificável de que as culturas, salvo as suspeitas de sempre, nasceram para o convívio cordial, que suas mútuas dissonâncias se limitam a mal-entendidos facilmente resolúveis, ele se revela como a mais recente encarnação do irrealismo suicida.

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