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NELSON ASCHER
Relativismo cultural e multiculturalismo
"Cultura " é um termo
quase infinitamente maleável. Trata-se de uma palavra
que, na boca de usuários distintos, tanto faz se leigos ou estudiosos profissionais, tem significações, valores, desdobramentos e
ressonâncias às vezes convergentes, às vezes inconciliáveis, mas,
em geral, diferentes.
Sua origem ou, pelo menos, até
onde se possa saber, seu sentido
primitivo parece se relacionar
com a criação, descoberta ou invenção da agricultura e, antes de
se aplicar aos humanos, a expressão designava (como quando se
fala, ainda agora, em "cultura da
mandioca" ou "cultura do café")
a disciplina imposta por nossos
ancestrais à Mãe Terra.
Etimologicamente, portanto,
nós é que, de início, cultivamos o
meio ambiente, nós o educamos e,
transformando, através do trabalho, do lavor, o mato em lavoura,
ensinamos a natureza a nos servir. A extensão da palavra "cultura" aos homens constitui um
exemplar acabado de metáfora,
pois implica uma seqüência de
"comos" ocultos: "Tal ou qual indivíduo, que era naturalmente
selvagem (COMO a selva), após
ser trabalhado COMO a terra,
tornou-se cultivado COMO um
terreno lavrado".
Uma vez que se metaforize um
vocábulo, processo este semelhante à neoplasia ou à fissão nuclear,
ninguém mais (exceto, talvez, uns
poucos poetas) sabe controlá-lo, e
sua acepção, distanciando-se da
raiz, modifica-se, ao sabor do uso,
sem cessar. Apesar de -ou graças
a- tal proliferação desvairada
de significados, o substantivo em
questão se encontra no centro das
principais controvérsias contemporâneas.
Mal se constatou a diversidade
cultural do planeta e eis que cada
cultura individual, outrora isolada e protegida pela geografia ou
pela história, vem sendo, em decorrência da globalização, confrontada com todas as restantes.
Essa interpenetração acelerada, a
despeito de compreensíveis aspirações idealistas de harmonia,
não tem como (ou por que) não
ser competitiva, ou melhor, declarando-o com todas as letras, conflituosa e violenta.
O darwinismo fora de lugar
que, transplantado metaforicamente da biologia para as humanidades, menos desencadeou do
que contribuiu para revestir de
respeitabilidade conceitual o narcisismo exclusivista de certos grupos, de determinadas etnias e nações, caiu, com toda justiça, depois de se associar a práticas eugênicas e exterminacionistas, em
descrédito não só científico. Ocorre que, ao contrário de suas deformações políticas, o "insight" do
próprio Darwin não envolvia, no
fundo, juízos de valor. Embora a
idéia de "evolução" sugira uma
hierarquia inerente, seu formulador, ao elaborar uma teoria a respeito de como as espécies se alteravam ou se alternavam, referia-se não à superioridade pura e
simples de uma sobre a rival, mas
sim à sua superior adequação no
contexto delimitado de circunstâncias cambiantes.
Por herético que soe, a lógica de
seu raciocínio, desde que rigorosamente apartada de veleidades
valorativas, segue sendo um instrumento capaz seja de elucidar
como várias culturas justapostas
interagem, seja de auxiliar a prever os possíveis resultados de sua
eventual concorrência. A pergunta a se colocar não é, assim, se esta
cultura é ou não melhor do que
aquela. Nisto, os relativistas estão
certos, já que, como no casos dos
milhares de línguas que existem,
nenhuma apresenta menos complexidade, riqueza, limitações do
que as demais. O que não quer dizer que, selecionada uma meta
explicitamente desejável, todas
conduzam ao destino de modo
igual.
Por exemplo, uma visão de
mundo que alivie as angústias geradas pela consciência da morte
não produz necessariamente
uma expectativa de vida mais
prolongada. As propostas igualitárias de justiça social raramente
se traduzem em coletividades
abastadas. Nem a opulência material generalizada se converte
em autêntica solidariedade, atenua conflitos interpessoais ou resolve ansiedades subjetivas. Tampouco basta a uma sociedade ser
pacífica para deixar de ser agredida pelas que não o são. Um viés
inesperado desvia boas intenções
rumo a conseqüências catastróficas, direitos coletivos se degradam amiúde em agravos pessoais
e/ou vice-versa. O leite que supre
os europeus nórdicos de cálcio
causa, no trato digestivo de ameríndios ou asiáticos orientais, cólicas insuportáveis. O remédio
que cura minha infecção pode
provocar um choque anafilático
letal em meu vizinho. E assim por
diante.
Enquanto o relativismo cultural meramente nos lembre da inexistência de uma espécie de padrão universal, de um paradigma
absoluto que nos permita emitir
julgamentos conclusivos acerca
das inúmeras culturas que há, ele,
valendo-se do ceticismo inteligente, desempenha um papel saudável e contribui para a autocompreensão da humanidade. Quando, todavia, cristalizando-se num
tabu que proscreve o exame sistemático de causas e efeitos específicos, dita que toda análise comparativa é "etnocêntrica" interessada, mal-intencionada etc., então
degenera numa nova forma de
obscurantismo.
E o que vale para o relativismo,
vale também para o multiculturalismo. Caso se limite a um programa pragmático voltado para a
redução plausível de entrechoques desnecessários de diferenças
desimportantes, ele cumpre uma
função cujos méritos não convém
menosprezar. Tão logo passa, no
entanto, a impor o dogma contra-intuitivo e empiricamente inverificável de que as culturas, salvo as
suspeitas de sempre, nasceram
para o convívio cordial, que suas
mútuas dissonâncias se limitam a
mal-entendidos facilmente resolúveis, ele se revela como a mais
recente encarnação do irrealismo
suicida.
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