|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Grande momento do milênio foi um inocente
Numa avaliação deste século e
deste milênio, o fato mais importante se deu em março de 1926.
Um acontecimento recente, sem
dúvida, mas que representou o eixo do milênio, a referência maior
- e praticamente única - do século que está acabando.
Deu-se que naquele mês e ano,
num aprazível lugar que antigamente os cariocas chamavam de
Boca do Mato, numa rua chamada Lins de Vasconcelos, no número 214, e para ser exato, às quatro
horas da tarde de um domingo,
nasceu um menino.
Oito dias após foi levado à pia
batismal da Matriz de N.S. da
Guia, uma quase capela em cima
de uma pequena elevação da qual
se podia ver o bairro todo e, mais
longe, o rolo de fumaça das velhas
locomotivas da Central do Brasil
que chegavam ao Méier.
A capela foi demolida para dar
espaço a outra, maior e mais feia.
O batistério foi o primeiro a tombar, e com ele desapareceu uma
placa ali colocada por um torcedor do São Cristóvão Atlético Clube, jornalista e fazedor de balões,
chamado Ernesto Cony Filho,
meu pai. A placa dizia: "Aos 22
dias do mês de março de 1926,
aqui neste batistério, foi solenemente batizado o inocente Carlos
Heitor".
Este "inocente Carlos Heitor"
sou eu mesmo e é possível que naquele tempo fosse ainda inocente.
E o "solenemente" ficou por conta
do pai, que adorava solenidades e
advérbios de modo.
Em míseros oito dias seria improvável que fizesse alguma coisa
abominável que me maculasse a
condição de inocente, condição
essa que logo perdi e nunca recuperei. Também fiz pouco esforço
para isso.
Pode ser que para os lapões, os
búlgaros, os piauienses, os texanos, os papuas da Guiné, para
grande parte do gênero humano
esse emocionante evento nada represente. A revista "Time", o "Osservatore Romano", as universidades e academias mais respeitáveis do mundo tampouco tomaram conhecimento do luminoso
fato que só foi comemorado pela
minha madrinha, também tia-avó Doneta, que era cega e declarou que eu era o guri mais bonito
que ela conhecera.
Afirmação que fora e seria repetida diversas vezes, antes e depois
daquela, pois Doneta era madrinha de todos os que nasciam na
família e sua opinião permanecia
inabalavelmente a mesma para
todos os que ela levava à pia batismal.
Daí que muito me distraio
quando tomo conhecimento das
resenhas, retrospectivas e listas do
mais isso e aquilo do milênio. Falou-se no descobrimento da América, na Revolução Francesa, na
invenção da imprensa, na bula
que Lutero colocou na porta da
catedral de Wittenberg, na conquista da Lua, na bomba de
Hiroshima.
Falou-se em Francisco de Assis,
na informática, no cachorro-quente, na higiene de Pasteur, na
psicanálise de Freud, na relatividade de Einstein, na catilinária
de Marx contra o capitalismo. Falou-se também das pernas de Mistinguett, do vôo de Nijinski em "O
Espectro da Rosa", nos concertos
de Brandenburgo, no teto da Capela Sistina e no chão que os judeus reconquistaram após uma
diáspora que atravessou dois milênios.
Como se nota, não faltaram
eventos importantes ao longo dos
mil anos que estamos encerrando.
Honestamente, não tenho preferência por nenhum desses formidáveis acontecimentos. Ora me
entusiasmo com um, ora com outro, conforme a inspiração e o auditório.
Mas aqui, dentro de mim mesmo, naquilo que os parnasianos
chamavam de "imo d'alma", todos esses fastos são secundários. E
alguns até desnecessários, como a
conquista da Lua e as pernas de
Mistinguett, que já tinham pelancas quando nasci, preferiria as
pernas de Cláudia Raia.
Pois a verdade é clara e indestrutível: se o inocente Carlos Heitor não tivesse nascido naquele local e data, de que lhe serviriam
até mesmo as pernas da Cláudia
Raia, que estão mais perto, e a
conquista da Lua, que está mais
longe?
Se o homem é a medida de todas
as coisas, são as coisas que medem
o homem. Eu sei de tudo isso, da
ternura de Francisco de Assis pelos passarinhos da Úmbria, da virulência de Lutero contra a Igreja
de Roma, dos filtros pasteurizados
e do tempo dos descobrimentos
porque vi o filme de Zeffirelli, li os
livros do Peninha, possuo a Enciclopédia Britânica em duas nutridas edições, detesto cachorro-quente (prefiro pizza), enfim, sou
a medida de todas as coisas.
Por sua vez, essas coisas todas de
certa forma me produziram, me
deram aquilo que nas redações
chamam de "texto final". Que seria eu se nunca tivesse ouvido os
concertos de Bach, sentido em cima de minha cabeça o teto da Capela Sistina, evitado micróbios
com os filtros de Pasteur e, aqui
entre nós, me deslumbrado não
exatamente com o par de pernas
de Mistinguett? Nesse particular,
tive excelentes compensações com
as pernas de Cyd Charisse e as já
citadas da Cláudia Raia.
Resumindo: se não houvesse
aquele março, aquela rua e aquele inocente, o milênio e o mundo
poderiam ter sido melhores, mas
não me teriam servido para nada.
Texto Anterior: Rádio: AM e FM escondem bons programas Próximo Texto: Gastronomia - Nina Horta: O réveillon cor-de-rosa Índice
|