São Paulo, Sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY
Grande momento do milênio foi um inocente

Numa avaliação deste século e deste milênio, o fato mais importante se deu em março de 1926. Um acontecimento recente, sem dúvida, mas que representou o eixo do milênio, a referência maior - e praticamente única - do século que está acabando.
Deu-se que naquele mês e ano, num aprazível lugar que antigamente os cariocas chamavam de Boca do Mato, numa rua chamada Lins de Vasconcelos, no número 214, e para ser exato, às quatro horas da tarde de um domingo, nasceu um menino.
Oito dias após foi levado à pia batismal da Matriz de N.S. da Guia, uma quase capela em cima de uma pequena elevação da qual se podia ver o bairro todo e, mais longe, o rolo de fumaça das velhas locomotivas da Central do Brasil que chegavam ao Méier.
A capela foi demolida para dar espaço a outra, maior e mais feia. O batistério foi o primeiro a tombar, e com ele desapareceu uma placa ali colocada por um torcedor do São Cristóvão Atlético Clube, jornalista e fazedor de balões, chamado Ernesto Cony Filho, meu pai. A placa dizia: "Aos 22 dias do mês de março de 1926, aqui neste batistério, foi solenemente batizado o inocente Carlos Heitor".
Este "inocente Carlos Heitor" sou eu mesmo e é possível que naquele tempo fosse ainda inocente. E o "solenemente" ficou por conta do pai, que adorava solenidades e advérbios de modo.
Em míseros oito dias seria improvável que fizesse alguma coisa abominável que me maculasse a condição de inocente, condição essa que logo perdi e nunca recuperei. Também fiz pouco esforço para isso.
Pode ser que para os lapões, os búlgaros, os piauienses, os texanos, os papuas da Guiné, para grande parte do gênero humano esse emocionante evento nada represente. A revista "Time", o "Osservatore Romano", as universidades e academias mais respeitáveis do mundo tampouco tomaram conhecimento do luminoso fato que só foi comemorado pela minha madrinha, também tia-avó Doneta, que era cega e declarou que eu era o guri mais bonito que ela conhecera.
Afirmação que fora e seria repetida diversas vezes, antes e depois daquela, pois Doneta era madrinha de todos os que nasciam na família e sua opinião permanecia inabalavelmente a mesma para todos os que ela levava à pia batismal.
Daí que muito me distraio quando tomo conhecimento das resenhas, retrospectivas e listas do mais isso e aquilo do milênio. Falou-se no descobrimento da América, na Revolução Francesa, na invenção da imprensa, na bula que Lutero colocou na porta da catedral de Wittenberg, na conquista da Lua, na bomba de Hiroshima.
Falou-se em Francisco de Assis, na informática, no cachorro-quente, na higiene de Pasteur, na psicanálise de Freud, na relatividade de Einstein, na catilinária de Marx contra o capitalismo. Falou-se também das pernas de Mistinguett, do vôo de Nijinski em "O Espectro da Rosa", nos concertos de Brandenburgo, no teto da Capela Sistina e no chão que os judeus reconquistaram após uma diáspora que atravessou dois milênios.
Como se nota, não faltaram eventos importantes ao longo dos mil anos que estamos encerrando. Honestamente, não tenho preferência por nenhum desses formidáveis acontecimentos. Ora me entusiasmo com um, ora com outro, conforme a inspiração e o auditório.
Mas aqui, dentro de mim mesmo, naquilo que os parnasianos chamavam de "imo d'alma", todos esses fastos são secundários. E alguns até desnecessários, como a conquista da Lua e as pernas de Mistinguett, que já tinham pelancas quando nasci, preferiria as pernas de Cláudia Raia.
Pois a verdade é clara e indestrutível: se o inocente Carlos Heitor não tivesse nascido naquele local e data, de que lhe serviriam até mesmo as pernas da Cláudia Raia, que estão mais perto, e a conquista da Lua, que está mais longe?
Se o homem é a medida de todas as coisas, são as coisas que medem o homem. Eu sei de tudo isso, da ternura de Francisco de Assis pelos passarinhos da Úmbria, da virulência de Lutero contra a Igreja de Roma, dos filtros pasteurizados e do tempo dos descobrimentos porque vi o filme de Zeffirelli, li os livros do Peninha, possuo a Enciclopédia Britânica em duas nutridas edições, detesto cachorro-quente (prefiro pizza), enfim, sou a medida de todas as coisas.
Por sua vez, essas coisas todas de certa forma me produziram, me deram aquilo que nas redações chamam de "texto final". Que seria eu se nunca tivesse ouvido os concertos de Bach, sentido em cima de minha cabeça o teto da Capela Sistina, evitado micróbios com os filtros de Pasteur e, aqui entre nós, me deslumbrado não exatamente com o par de pernas de Mistinguett? Nesse particular, tive excelentes compensações com as pernas de Cyd Charisse e as já citadas da Cláudia Raia.
Resumindo: se não houvesse aquele março, aquela rua e aquele inocente, o milênio e o mundo poderiam ter sido melhores, mas não me teriam servido para nada.


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