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GASTRONOMIA
O réveillon cor-de-rosa
NINA HORTA
Colunista da Folha
Assim, não mais que de repente,
estamos chegando ao ano 2000.
Parecem séculos desde que meu
pai pedia risos à menina meio
apavorada: "No ano 2000 quero
você vestida de cor-de-rosa, dançando alegre com seu irmão".
Era um desafio impossível. Faltava tanto tempo e uma velhota
de cabelos brancos, de rosa, a girar, a girar...
Meu pai, eu estou aqui, sem o
irmão. Nesta semana tenho que
estar atenta e forte para poder
cumprir o combinado. Ganhei
um xale lindo de Maria Helena, é
como se fosse ela e Arthur que
dessem, é de um rosa antigo, seco,
não vou fazer feia figura.
O negócio é que em uma semana tudo pode acontecer. Fugi do
caos de São Paulo para a relativa
paz de Parati esperando o 31.
Viajei light, se é possível a um caracol viajar light. Trouxe os presentes de Natal, os vinhos do Belarmino, os panetones do Massimo, o bolo dourado da Piva, os livros de Maria Emília, os chocolates grávidos da Poppovic, a cortina da florida Rebeca, as flores de
Suzana, as alpargatas fluorescentes do Rui Porto. São carinhos,
nutrem a alma, podem me fazer
chegar mais longe.
Parati não é exatamente o lugar onde se pode dar trela à grande ceifadora. A noite, que deveria
ser de vigília atenta, foi mesmo.
Caiu tempestade de raios sobre a
telha vã e trovoou como nunca.
Faltou luz. Faltou tração nas
quatro rodas. As pererecas todas
resolveram vir morar conosco e se
ofereceram em holocausto inútil,
perseguidas até o amargo fim pela alpargata cintilante tamanho
maior que iria ser estreada no réveillon.
Desço as escadas de madeira,
feitas a mão, cheias de quinas ásperas, ainda com elas, as sandálias que brilham no escuro como
estrelas. Confesso que sem as havaianas teria problemas para
chegar ao ano 2000 sã e salva.
Nas horas vagas, prometo a
Deus mundos e fundos para atravessar esta ponte de séculos, de
mil anos.
Prometo o uso justo e moderado
dos ingredientes, prometo o equilíbrio, a frugalidade. Em troca
deste réveillon cor-de-rosa, prometo tratar com amor e respeito o
frango barato, o peixe prateado, o
pato, o gordo porco, a portentosa
vaca, a fragilidade sonsa da galinha, o tremor da ostra. É com humildade que agradeço às centenas de animais que se deram a
nós com alegria, "lispectoras" galinhas, ovos plenos de gema e de
sentido, espinafres ferrosos, abacaxis e mangas de ouro doce, kiwis sem asas.
Agradeço às facas afiadas, cúmplices e fiéis, às panelas rotundas,
mansas, amigas. Aos garfos e colheres, peneiras e tampas, fôrmas,
panos de prato, máquinas que trituram o duro, batem o mole.
"Benza Deus" a cozinha que
tantas vezes parece a casa do demônio, "fogopegando", "calormatando".
Obrigada à àgua fresca que
canta nas torneiras, às compridas
mesas de mármore enfarinhadas,
ao fogão velho e craquelento estalando metais, obrigada às cristas
roxas do fogo. Azuis?
Obrigada aos funcionários homens e mulheres, cozinheiros,
garçons, fornecedores, promotores, clientes que nos ajudaram na
lida do ano.
Sem esquecer os leitores desta
página, infatigáveis amigos, ao
editor, à redação em peso, à escondida Vicentina e a você, Maria Eugênia, minha artista.
Espero estar de volta em 2000,
descansada, xale cor-de-rosa
amassado, missão cumprida.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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