São Paulo, Sexta-feira, 31 de Dezembro de 1999


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GASTRONOMIA
O réveillon cor-de-rosa

NINA HORTA
Colunista da Folha


Assim, não mais que de repente, estamos chegando ao ano 2000. Parecem séculos desde que meu pai pedia risos à menina meio apavorada: "No ano 2000 quero você vestida de cor-de-rosa, dançando alegre com seu irmão".
Era um desafio impossível. Faltava tanto tempo e uma velhota de cabelos brancos, de rosa, a girar, a girar...
Meu pai, eu estou aqui, sem o irmão. Nesta semana tenho que estar atenta e forte para poder cumprir o combinado. Ganhei um xale lindo de Maria Helena, é como se fosse ela e Arthur que dessem, é de um rosa antigo, seco, não vou fazer feia figura.
O negócio é que em uma semana tudo pode acontecer. Fugi do caos de São Paulo para a relativa paz de Parati esperando o 31. Viajei light, se é possível a um caracol viajar light. Trouxe os presentes de Natal, os vinhos do Belarmino, os panetones do Massimo, o bolo dourado da Piva, os livros de Maria Emília, os chocolates grávidos da Poppovic, a cortina da florida Rebeca, as flores de Suzana, as alpargatas fluorescentes do Rui Porto. São carinhos, nutrem a alma, podem me fazer chegar mais longe.
Parati não é exatamente o lugar onde se pode dar trela à grande ceifadora. A noite, que deveria ser de vigília atenta, foi mesmo. Caiu tempestade de raios sobre a telha vã e trovoou como nunca. Faltou luz. Faltou tração nas quatro rodas. As pererecas todas resolveram vir morar conosco e se ofereceram em holocausto inútil, perseguidas até o amargo fim pela alpargata cintilante tamanho maior que iria ser estreada no réveillon.
Desço as escadas de madeira, feitas a mão, cheias de quinas ásperas, ainda com elas, as sandálias que brilham no escuro como estrelas. Confesso que sem as havaianas teria problemas para chegar ao ano 2000 sã e salva.
Nas horas vagas, prometo a Deus mundos e fundos para atravessar esta ponte de séculos, de mil anos.
Prometo o uso justo e moderado dos ingredientes, prometo o equilíbrio, a frugalidade. Em troca deste réveillon cor-de-rosa, prometo tratar com amor e respeito o frango barato, o peixe prateado, o pato, o gordo porco, a portentosa vaca, a fragilidade sonsa da galinha, o tremor da ostra. É com humildade que agradeço às centenas de animais que se deram a nós com alegria, "lispectoras" galinhas, ovos plenos de gema e de sentido, espinafres ferrosos, abacaxis e mangas de ouro doce, kiwis sem asas.
Agradeço às facas afiadas, cúmplices e fiéis, às panelas rotundas, mansas, amigas. Aos garfos e colheres, peneiras e tampas, fôrmas, panos de prato, máquinas que trituram o duro, batem o mole.
"Benza Deus" a cozinha que tantas vezes parece a casa do demônio, "fogopegando", "calormatando".
Obrigada à àgua fresca que canta nas torneiras, às compridas mesas de mármore enfarinhadas, ao fogão velho e craquelento estalando metais, obrigada às cristas roxas do fogo. Azuis?
Obrigada aos funcionários homens e mulheres, cozinheiros, garçons, fornecedores, promotores, clientes que nos ajudaram na lida do ano.
Sem esquecer os leitores desta página, infatigáveis amigos, ao editor, à redação em peso, à escondida Vicentina e a você, Maria Eugênia, minha artista.
Espero estar de volta em 2000, descansada, xale cor-de-rosa amassado, missão cumprida.

E-mail: ninahort@uol.com.br


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