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LIVROS/LANÇAMENTOS
"O Negro Brasileiro e o Cinema" faz raio-X antropológico
Crítico procura imagens da
maioria nas telas do país
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Culto e bem-informado crítico cinematográfico, João
Carlos Rodrigues estuda a importância gnoseológica da imagem
do povo registrada pelo cinema.
Está implícito: o povo que estiver
impossibilitado de se ver refletido
na tela anda mal das pernas.
Trata-se de um povo morto ou
culturalmente moribundo.
"Por não ser eu mesmo um negro, procurei alcançar um grau
adequado de isenção, intermediário entre a emoção e a razão, a
simpatia e a imparcialidade", escreve o autor, que é também biógrafo do escritor carioca João do
Rio, um mestre no estudo das religiões das camadas populares no
Rio de Janeiro.
Inexiste no Brasil, ou senão é raríssimo, cineasta negro diretor, isto é: atrás da câmera. Não há, que
saiba, nenhum negro dirigindo
longa-metragem desde 1980.
Na apresentação Carlos Diegues, cineasta filho do etnólogo
alagoano Manuel Diegues Júnior,
se refere ao ponto de partida de
investigação do autor: o negro
perdura como negro no tempo
brasileiro, não obstante a miscigenação no sangue e o sincretismo
na alma.
A isso, acrescente-se, conforme
sabemos da sociologia do açúcar,
que na cultura popular os rios de
Portugais encontram-se nas
águas do Capibaribe. Ou seja: o
negro no Brasil é invenção do
açúcar explorado pelo colonizador português latifundiário.
Por estar empenhado em traçar
um raio-X da maioria da população, João Carlos Rodrigues tomou como objeto a imagem do
negro no cinema, e não a da mulher, a do índio, a do homossexual, a do operário e a do burguês.
O grande lance desse livro, disse-o muito bem Nei Lopes, é a tipologia ou a taxonomia do negro
tal qual é representado no teatro,
no cinema e no romance.
O que mostra o conhecimento
intensivo e extensivo da cultura
brasileira, qualidade cada vez
mais "avis rara" na crítica.
"Na ficção brasileira, no cinema
ou fora dela, todos os personagens negros pertencem a uma das
classificações abaixo, ou são uma
mistura de mais de uma delas,
uma fusão de tipos de diferentes
origens."
Eis a excelente taxonomia: o escravo; sambista; a mulata boazuda; o preto-velho, ágrafo e supersticioso; a mãe-preta lactante e
conformada; o martírio do Negrinho do Pastoreio; o negro de alma
branca; o negro revoltado; o negão lúbrico; o malandro; o favelado; o crioulo doido; a musa afro-baiana.
Arquétipo
Mergulhando fundo nos autores que manjam do assunto, a
exemplo de Artur Ramos e Pierre
Verger, João Carlos Rodrigues
aborda a relação do cinema com a
antropologia: o negro brasileiro é
arquétipo, e não personagem individualizada. É tipo, persona de
muitos, feixe de relações que nem
na unidade mental da umbanda,
como se a psicologia individual
estivesse suspensa ou retraída.
É difícil conceber a existência de
uma viagem egóica no espaço da
bagaceira, por onde se processou
a socialização da psique do negro.
Mais a bagaceira, que é o simpósio palrador, do que o eito e a senzala.
Aliás, o cinema brasileiro, refletindo às vezes até inconscientemente essa particularidade da
nossa civilização, é um cinema
onde está diluída ou rarefeita a
significação psicológica individual dos personagens. Gilberto
Freyre já mostrou, e Luís da Câmara Cascudo também, que isso
não é nenhuma desvantagem na
configuração da psique afro-brasileira, de notada coexistência católica e jejê-nagô, com a sua extraordinária sociabilidade.
E mais: o negro brasileiro não é
culturalmente entidade autônoma nem ilha, mas sim vaso comunicante. É que não se depara em
nosso imaginário, segundo a
ciência do folclore, mito exclusivamente negro.
Nem mesmo o quibungo na Bahia é 100% ébano. Talvez por aí se
explique a ausência entre nós do
étnico "race movie" que medra na
América do Norte.
O pesquisador João Carlos Rodrigues sublinha com razão a forte presença do "colonialismo cultural" no profundo desinteresse
do negro brasileiro por filmes reflexivos sobre si próprio, o que
também se aplica ao homem brasileiro em geral.
E, nesse aspecto, é irrecusável a
maré montante do colonialismo
cultural a partir da década de
1980, em que o menu audiovisual
está compartilhado pela "Tela
Quente" e a telenovela fungível e
perfunctória.
Do que me ficou da leitura desse
estupendo livro é que o negro no
Brasil não tem solução específica,
seja étnica ou social, pois o seu
destino depende do destino da sociedade brasileira como um todo.
Portanto, sua solução é popular
e nacional.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed.
Senac), entre outros
O Negro Brasileiro e o Cinema
Autor: João Carlos Rodrigues
Editora: Pallas
Quanto: R$ 39 (223 págs.)
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