São Paulo, segunda-feira, 31 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTOS

"O Negro Brasileiro e o Cinema" faz raio-X antropológico

Crítico procura imagens da maioria nas telas do país

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Culto e bem-informado crítico cinematográfico, João Carlos Rodrigues estuda a importância gnoseológica da imagem do povo registrada pelo cinema. Está implícito: o povo que estiver impossibilitado de se ver refletido na tela anda mal das pernas.
Trata-se de um povo morto ou culturalmente moribundo.
"Por não ser eu mesmo um negro, procurei alcançar um grau adequado de isenção, intermediário entre a emoção e a razão, a simpatia e a imparcialidade", escreve o autor, que é também biógrafo do escritor carioca João do Rio, um mestre no estudo das religiões das camadas populares no Rio de Janeiro.
Inexiste no Brasil, ou senão é raríssimo, cineasta negro diretor, isto é: atrás da câmera. Não há, que saiba, nenhum negro dirigindo longa-metragem desde 1980.
Na apresentação Carlos Diegues, cineasta filho do etnólogo alagoano Manuel Diegues Júnior, se refere ao ponto de partida de investigação do autor: o negro perdura como negro no tempo brasileiro, não obstante a miscigenação no sangue e o sincretismo na alma.
A isso, acrescente-se, conforme sabemos da sociologia do açúcar, que na cultura popular os rios de Portugais encontram-se nas águas do Capibaribe. Ou seja: o negro no Brasil é invenção do açúcar explorado pelo colonizador português latifundiário.
Por estar empenhado em traçar um raio-X da maioria da população, João Carlos Rodrigues tomou como objeto a imagem do negro no cinema, e não a da mulher, a do índio, a do homossexual, a do operário e a do burguês.
O grande lance desse livro, disse-o muito bem Nei Lopes, é a tipologia ou a taxonomia do negro tal qual é representado no teatro, no cinema e no romance.
O que mostra o conhecimento intensivo e extensivo da cultura brasileira, qualidade cada vez mais "avis rara" na crítica.
"Na ficção brasileira, no cinema ou fora dela, todos os personagens negros pertencem a uma das classificações abaixo, ou são uma mistura de mais de uma delas, uma fusão de tipos de diferentes origens."
Eis a excelente taxonomia: o escravo; sambista; a mulata boazuda; o preto-velho, ágrafo e supersticioso; a mãe-preta lactante e conformada; o martírio do Negrinho do Pastoreio; o negro de alma branca; o negro revoltado; o negão lúbrico; o malandro; o favelado; o crioulo doido; a musa afro-baiana.

Arquétipo
Mergulhando fundo nos autores que manjam do assunto, a exemplo de Artur Ramos e Pierre Verger, João Carlos Rodrigues aborda a relação do cinema com a antropologia: o negro brasileiro é arquétipo, e não personagem individualizada. É tipo, persona de muitos, feixe de relações que nem na unidade mental da umbanda, como se a psicologia individual estivesse suspensa ou retraída.
É difícil conceber a existência de uma viagem egóica no espaço da bagaceira, por onde se processou a socialização da psique do negro. Mais a bagaceira, que é o simpósio palrador, do que o eito e a senzala.
Aliás, o cinema brasileiro, refletindo às vezes até inconscientemente essa particularidade da nossa civilização, é um cinema onde está diluída ou rarefeita a significação psicológica individual dos personagens. Gilberto Freyre já mostrou, e Luís da Câmara Cascudo também, que isso não é nenhuma desvantagem na configuração da psique afro-brasileira, de notada coexistência católica e jejê-nagô, com a sua extraordinária sociabilidade.
E mais: o negro brasileiro não é culturalmente entidade autônoma nem ilha, mas sim vaso comunicante. É que não se depara em nosso imaginário, segundo a ciência do folclore, mito exclusivamente negro.
Nem mesmo o quibungo na Bahia é 100% ébano. Talvez por aí se explique a ausência entre nós do étnico "race movie" que medra na América do Norte.
O pesquisador João Carlos Rodrigues sublinha com razão a forte presença do "colonialismo cultural" no profundo desinteresse do negro brasileiro por filmes reflexivos sobre si próprio, o que também se aplica ao homem brasileiro em geral.
E, nesse aspecto, é irrecusável a maré montante do colonialismo cultural a partir da década de 1980, em que o menu audiovisual está compartilhado pela "Tela Quente" e a telenovela fungível e perfunctória.
Do que me ficou da leitura desse estupendo livro é que o negro no Brasil não tem solução específica, seja étnica ou social, pois o seu destino depende do destino da sociedade brasileira como um todo.
Portanto, sua solução é popular e nacional.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac), entre outros


O Negro Brasileiro e o Cinema
    
Autor: João Carlos Rodrigues
Editora: Pallas
Quanto: R$ 39 (223 págs.)



Texto Anterior: "Ano deve aproximar apresentador da elite cultural"
Próximo Texto: "Francisco Julião - Luta, Paixão e Morte de um Agitador": Filho da casa-grande foi líder sem-terra
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.