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Consagrado diretor japonês fala à Folha sobre "Dolls", seu mais recente longa-metragem
O teatro de marionetes de Takeshi Kitano
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
"E como vai Lula?", pergunta a
intérprete francesa de Takeshi Kitano quando a Folha se apresenta
para a entrevista com o cineasta
japonês. "Lu-la?", repete Kitano.
A intérprete explica: "É o político
de esquerda que foi eleito no Brasil". Kitano solta uma exclamação
forte, como um samurai de Kurosawa: "Ôoooà". E diz: "No Japão,
eles mandam matar todos os políticos de esquerda".
É o lado Beat Takeshi que está
falando no diretor. Beat é o apelido de Kitano na televisão japonesa, da qual ele é talvez o apresentador mais famoso de todos os tempos. Sua relação com a TV começou no fim dos anos 70, quando
participou de atrações de humor e
escracho. Virou um cult entre diferentes gerações. Nos últimos
anos, fez desde recreações de auditório, em que se vestia de mocinha ou tirava a roupa, até "talk
show" político e programas sobre
arte, como "Todos Podem Ser Picasso", que comanda há seis anos.
Kitano, 55, é o rei do "geinokai"
(mundo do entretenimento). Mas
é também escritor, pintor, ator de
prestígio e o principal diretor de
cinema do país hoje. Em 1997, ganhou o Leão de Ouro em Veneza
com "Hana-Bi", em que fazia o
papel principal. Foi a consagração
internacional de sua poética cinematográfica, marcada pela convergência de um extremado lirismo com a violência mais crua.
Em 2002, Kitano mostrou no
mesmo festival seu filme mais recente, "Dolls" (que esteve na 26ª
Mostra BR de Cinema, em SP,
mas ainda não tem data de estréia
no país). A tradução literal é "bonecas", mas talvez seja apropriado verter como "marionetes". O
entusiasmo da crítica em Veneza
foi enorme, mas o júri fechou os
olhos para Kitano. Para as entrevistas em Paris sobre o filme, em
novembro, pintou os cabelos de
branco. "Queria ser um panda."
É um sujeito forte, energético e
bem-humorado. Na aparência, o
contrário de um urso: por vezes
lembra um tigre, noutras, uma
serpente. Devido a um acidente
em 94, sua face direita tem leve
paralisia, o que lhe dá um ar sinistro, perfeito à encarnação de bandidos no cinema, o que já fez, incorporando personagens ligados
à Yakuza, a máfia japonesa tantas
vezes retratada em seus filmes.
Há um membro da Yakuza em
seu novo filme, mas "Dolls" não
trata da máfia nem dos crimes de
ocasião: é radical, suntuoso e quase experimental sobre o amor e a
morte, para ser sucinto. Kitano
considera-o, no entanto, o seu
trabalho mais violento no cinema.
"Ele tem uma violência menos
aparente, mas igualmente devastadora: a provocada pelas emoções e passagem do tempo."
São três histórias paralelas, sobre três casais. Na primeira, a
mais desesperada, um rapaz desiste na última hora do casamento
arranjado pelos pais e vai ao encontro da amada, que tentou suicídio por causa dele. A moça jamais se recuperará. Ao sair do
hospital, passa a vagar silenciosa,
distante e enlouquecida, sempre
seguida pelo moço, que acaba por
apresentar os mesmos sintomas
de alheamento. Os dois seguirão
pelas ruas do Japão, ligados por
uma corda vermelha, como fantasmas de um conto trágico.
A segunda história, a mais contemporânea, fala da devoção de
um fã por uma "popstar", que,
após sofrer um acidente, retira-se
para uma praia afastada, onde
passa os dias a mirar o oceano. Na
terceira, a mais comovente, um
velho membro da Yakuza resolve
voltar, 30 anos depois, ao parque
onde sempre encontrava, aos sábados, a namorada. Para sua surpresa, ela está lá. Por 30 anos, desde que ele desapareceu sem dar
notícia, abandonando sua vida de
operário para se associar à máfia,
a namorada nunca deixou de retornar ao parque, no mesmo dia
da semana, no mesmo horário.
Kitano conta que as histórias
são baseadas em fragmentos de
sua vida. Na infância, ficou impressionado com um casal de
mendigos que caminhavam sem
destino, amarrados um ao outro
por uma corda. Quando se acidentou em 1994, sofrendo paralisia facial, diz que viveu experiência parecida à da "popstar" de seu
filme. E ele também abandonou
uma namorada no passado ao decidir pela carreira de ator.
A extrema objetividade do diretor transforma essas rememorações em ícones complexos onde o
Japão contemporâneo se confunde, como nunca no cinema de Kitano, com a tradição narrativa,
teatral e visual do país. A pintura
clássica japonesa é evocada e
transfigurada nos planos, numa
convergência encantadora com a
arte pop -o que o artista Takashi
Murakami poderia chamar de um
exemplo acabado de "pós-japonismo" no cinema (leia abaixo).
O filme é, além disso, inspirado
no bunraku, antigo teatro de marionetes, e na obra de seu maior
dramaturgo, Monzaemon Chikamatsu (1653-1724), chamado de
"Shakespeare do Oriente", cujas
histórias Mizoguchi levou às telas
em "Amantes Crucificados"
(1954). "Minha avó cantava no
bunraku, em que as histórias tratam de amores impossíveis, como
as que conto no filme. Meus personagens são como marionetes
transformadas em humanos."
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