São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 2002

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FERNANDO BONASSI

Aquilo que é "maravilhoso"

- E ntão nós viemos?!
- Viemos. Escuta, onde eu coloco as malas?
- Malas?! Ah, sim, pode deixar em qualquer lugar...
- Aqui tá bom?
- Ahm?! Quer dizer que nós conseguimos?!
- Claro que conseguimos. Nossa! O que é que você trouxe aqui?!
- Só umas mudas de roupa...
- "Só"?! É verão, estamos nos trópicos, lembra?
- Eu mal posso acreditar que nós chegamos até aqui!
- Mas é a pura verdade.
- Parecia impossível!
- Exagero.
- Você percebe o que isso significa?!
- Significa que... é bom. É bom, não é?
- Bom?! Não é só "bom", é...
- "Ótimo"?
- Apesar de tudo e de todos... é...
- "Fantástico"?
- Eu estou aqui. Você está aqui. Eu vejo, eu posso tocar, mas...
- Escuta, nós combinamos. Nós viemos.
- Combinamos...
- Isso, tiramos licença, fizemos essas malas, pegamos condução e viemos, chegamos... lembra? Tudo conforme o combinado.
- Tão simples e ao mesmo tempo tão...
- Nós nem temos tanto tempo.
- Já?! Tão rápido!
- Calma, também não é assim...
- É assim, sim!
- Desfazemos as malas agora?
- Me bate.
- O quê?!
- Me dá um tapa, uma mordida, me arranha, me belisca...
- Mas...
- Você vai fazer o que eu tô te pedindo?
- OK, OK... Tá bom assim?
- Ai-ai-ai! Tá... chega.
- Você é uma coisa. Escuta, hoje eu pensei em jantar naquele restauran...
- Péra. Escuta você... tá ouvindo?
- O quê?
- A chuva.
- Chuva? É, chove.
- Até isso! Nós, essa chuva... não é simplesmente...
- "Demais"?
- É...
- "Perfeito"?
- É...
- "Surpreendente"?
- O atendimento. Você prestou atenção no atendimento?
- Prestei...
- Tanta gentileza...
- Eles cobram por isso.
- Você já tinha estado num lugar assim antes?
- Eu?
- Não mente.
- Juro!
- Jurar falso, você sabe...
- Nunca!
- Você... você... você é...
- "Maravilhoso"?
- Essa decoração!
- Eles também cobram por isso... mas é certo que têm bom gosto.
- É simplesmente... "maravilhosa".
- Hum-hum.
- Você me desculpa, eu mal...
- Tudo bem.
- É que é... "maravilhoso". Simplesmente "maravilhoso" mesmo, sabe?
- Acho... que sim...
- É tão... "maravilhoso"... mas tão "maravilhoso"... dá um medo que acabe, não dá?
- O quê?
- Algo tão especial... "especial" não... algo...
- ... "Maravilhoso".
- Você também sente!
- Não.
- O quê?
- Medo que acabe. Não me dá. Você tinha perguntado.
- O que te faz pensar que não?
- Eu não sei.
- Tá vendo!
- Olha, você quer saber?
- Quero.
- Quer saber mesmo?!
- Quero!
- Bem... bom... não acaba porque não acaba, oras!
- Como assim?
- Porque eu sou uma "maravilha" de pessoa, a decoração é "maravilhosa", o atendimento é simplesmente perfeito, ou "maravilhoso", a chuva "maravilhosa" continua chovendo "maravilhosamente" lá fora e...
- Não sei, não...
- De onde você tira essas idéias?
- Da vida, oras! Quando eu podia imaginar que eu... você... aqui...
- E daí?
- Daí que tudo isso pode acabar! Num instante! Você não entende?!
- Não. Não entendo. Nada disso vai acabar, criatura! Nada!
- Vai acabar! Vai acabar, sim!
Olha pra mim! Olha... Tá vendo?!
Já acabou.



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