Crítica Música Barroca

Contratenor Andreas Scholl tem canto natural e perfeccionismo da afinação

O QUE CHAMA ATENÇÃO É A CONSISTÊNCIA DE SUA PREPARAÇÃO

"Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu pensamento": ao reescrever o mandamento máximo do monoteísmo hebraico, o texto cristão introduz justamente o "pensar" como componente do "love supreme".

O novo amálgama de inteligência e amor parece estar na raiz da música religiosa de Johann Sebastian Bach (1685-1750), não apenas unitiva e contemplativa, mas altamente cerebral e interiorizada.

A "Cantata BWV 169", escrita em 1726, tem como lema o mandamento acima. Seguindo o desenho do gênero, inclui uma abertura sinfônica e alterna recitativos (passagens quase declamadas) com árias (canções com voz solista acompanhada), terminando com um coral.

É uma das obras em "Cantatas", o novo CD do contratenor alemão Andreas Scholl, totalmente voltado a esse repertório. Scholl, de 44 anos, especializou-se desde jovem na música barroca.

Como em muitos momentos de Freddie Mercury (1946-91) e Michael Jackson (1958-2009), ele canta em falsete, atingindo um registro de contralto (voz feminina grave). Seu canto é sempre natural, e o perfeccionismo da afinação é um virtuosismo à parte.

Usa com propriedade o ré e o ré sustenido agudos, sempre muito sonoros e límpidos, que mudam de timbre ao interagir com oboé (na "Cantata BWV 82"), violinos (na "BWV 200"), flautas doce (na "BWV 161") ou órgão (na própria "BWV 169").

Mas o que chama atenção é a consistência de sua preparação, a intensidade com que absorve e diz o texto -o tom afetivo sem afetação, uma compreensão serena, nunca sentimental.

Para buscar o amor divino talvez seja preciso matar os "encantos do olhar", diz a ária "Stirb in Mir" ("Morrei em Mim"). No ponto que menciona o amor mundano, Bach escreve uma dura dissonância; como bom ator, Scholl nada adiciona -ele sabe que a dor está lá, naquela nota mi.