Opinião

Culto a "Transa" encobre caretice e intolerância a seus melhores discos

O culto ao ótimo "Transa" por minha geração, nascida nos anos 70 e 80, não é, infelizmente, uma porta aberta para o que Caetano gravou nas décadas seguintes.

Pelo contrário, gostar só desse álbum ou achá-lo tão superior a outros do baiano é sinal de caretice travestida de garimpagem "hypada".

Como se este fosse o Caetano "autêntico", e não o atual, que "mudou", tocado pela máquina mercante.

"Transa" virou mito, e como tal merece ser desconstruído. Por que faz a cabeça das mesmas pessoas que desprezam intervenções públicas e discos recentes de Caetano? Arrisco aqui algumas razões.

1) O clima pós-Beatles tira o disco da esfera da MPB e soa dócil a ouvidos criados numa rigorosa dieta de britpop.

2) Em "Transa", as poucas letras em português não são dele: ergue-se uma certa barreira sanitária contra um de seus pontos fortes, a poesia.

Das letras em inglês, o próprio autor só acha "Nine Out of Ten" "realmente boa". Logo, o letrista não está em sua melhor forma. O "fog" londrino embaça alguma coisa e ficamos com os belos jogos vocais de "It's a Long Way" e disparates abilolados ("só que tem vovó pelanca" etc.).

3) O disco agrada por ser bem amarrado, a montagem concretista prefigura os "mash-ups" (colagens de canções incidentais) de hoje.

Outros álbuns de Caetano, no entanto, são mais bem amarrados. Basta citar o díptico "Joia" e "Qualquer Coisa", que depura a conversa com os Beatles, a montagem concretista, as letras etc.

A canção do exílio "Triste Bahia" se adensa em 1978, com "Terra"; "Nine Out of Ten" ganha versão superior em "Velô" (1984); o "rock artesanal" ganha corpo em "Cê" e "Zii & Zie" etc. etc.

Por que, então, supervalorizar "Transa"? Na ficção, seria o mesmo que ficar à procura do Guimarães Rosa de hoje; no cinema, achar que Woody Allen parou em "Manhattan"; em fevereiro, lamentar a morte do Carnaval.

Enquanto isso, "Cinema Transcendental" e "Cê", melhores do que "Transa", permanecem esgotados.