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Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A biblioteca da garagem

São Paulo, outubro de 1993

JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA

OUTUBRO DE 1993. Eu havia retornado a São Paulo, após participar da reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), com uma preocupação: localizar um texto de Renato Jardim Moreira e José Correia Leite, citado por David Brookshaw em "Raça e Cor" (Mercado Aberto, 1983), livro que pouco circulara e somente me chegara às mãos durante a reunião anual daquela associação, em que antropólogos, sociólogos e cientistas políticos debatiam a questão racial brasileira.

O texto me intrigara porque, como estudioso do tema, jamais tivera acesso a ele. Conhecia-o só de citação. No livro, porém, o autor dizia havê-lo consultado na biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Por coincidência, à época, eu integrava o conselho do IEB, o que me facilitou uma busca minuciosa. Nada encontrei.

Só me restava consultar o meu ex-professor Florestan Fernandes (1920-95), pois o texto era peça de um famoso e revolucionário projeto da Unesco sobre relações raciais, que, na década de 50, em São Paulo, tivera o professor e Roger Bastide à frente de uma equipe da qual Renato Jardim Moreira era assistente.

Procurei Florestan, então meu amigo fraterno e vizinho, em sua casa térrea na rua Nebraska. Sua biblioteca, usurpando o espaço que seria do carro, ocupava a ampla garagem da casa. Expliquei o motivo da visita, e Florestan respondeu de pronto: "O autor se enganou. Esse texto está comigo e nunca foi publicado. Espere que vou localizá-lo".

Abriu uma das dezenas de gavetas de um móvel de madeira maciça, uma espécie de arquivo (hoje incorporado ao acervo Florestan Fernandes, na Universidade Federal de São Carlos). Lá estava o texto, todo anotado com tinta roxa (a predileta do professor). Vitorioso, estendeu-me o material. "Já o usei exaustivamente; pode levá-lo."

Antes que eu me levantasse da poltrona localizada ao fundo da biblioteca e escondida atrás de montanhas de livros, para receber o texto, fomos surpreendidos pela entrada inesperada, um tanto agitada, de Fernando Henrique Cardoso. Prestes a dizer algo a seu também ex-professor, o então ministro da Fazenda notou minha presença. A fala ficou no ar. Silêncio constrangedor.

Preparava-me para deixar a biblioteca quando Florestan encontrou a saída que denunciava o alto grau de intimidade entre ambos, apesar de filiados a partidos diferentes e até antagônicos (FHC foi fundador do PSDB, ao passo que Florestan foi um dos intelectuais fundadores do PT). "Fernando, vamos entrar. Tomamos café, conversamos e você pode cumprimentar Miriam." E, voltando-se para mim: "Vá lendo o texto, daqui a pouco conversamos".

Quase uma hora depois, retornou. Olhou-me preocupado: "Sabe por que Fernando veio me procurar?". Falei que não fazia ideia. "Imagine você que Fernando veio me comunicar que vai se candidatar à Presidência da República, com o apoio certo do presidente Itamar Franco. Fiquei surpreso e preocupado. Tentei desestimulá-lo, alertando-o de que, se eleito, ele iria entrar num antro de velhas raposas políticas que o enrolariam e o fariam deixar de lado seus princípios político-ideológicos. Sabe o que me respondeu?"

"Ele lhe disse que ficasse tranquilo, pois, assim que entrasse no covil, ele domaria as feras", respondi, para espanto do professor. "Como você sabe?", questionou.

"Professor...", falei, "Fernando sempre pensou e agiu assim nos momentos tensos de nossa vida acadêmica. Nunca vi ninguém, por mais ardiloso ou raivoso, que não se rendesse aos seus modos conciliadores e envolventes. Como presidente decerto não será diferente, ainda que o palco e os atores sociais sejam outros".

"Espero que você tenha razão. Espero", concluiu Florestan Fernandes, entregando-me, enfim, o texto que tanto me interessava.

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