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Para compreender o acontecimento Lygia

AFONSO LUZ

"Arquivo para uma Obra-Acontecimento" -título e conceito que dão precisão à publicação, projeto da psicanalista, crítica e curadora Suely Rolnik, recentemente resenhada na "Ilustríssima". Um dispositivo para fazer circular memórias e documentos do fenômeno artístico-cultural do passado convertido em paradigma do contemporâneo -isso é algo a ser pensado na importância própria que tem, mas não o notou a resenha. Voltemos um bocadinho ao assunto.

O design do coletivo Bijari embala 20 perspectivas diferentes de interação com Lygia Clark (1920-1988), depoimentos sobre o processo estético-existencial de seu trabalho, relatos de suas pesquisas e práticas, reflexões sobre a institucionalização do legado, revelando complexidade na obra e sua projeção de sentido no mundo.

O recorte dos 65 testemunhos que integram o projeto alinhava a questão: como expor "Objetos Relacionais" criados como eventos efêmeros, experiências específicas na presença da artista, seu toque e desencadear de afetos? Como refundar a atividade subjetiva e criadora ocorrida em torno destes, sua imaterialidade?

Se fruir tais obras requer conceituar o intervalo entre enunciação-propositor e vivência-espectador, estabelecer a intuição corporal recíproca, curadores e coleções devem inventar métodos para preservar seu patrimônio. Tanto mais na série iniciada com "Caminhando" (1963) e seguida até "Estruturação do Self" (anos 70-80), compreendida hoje entre fundadoras da experiência estética e ambiental da arte contemporânea. Ali a "obra" vai muito além da dimensão de produto tangível ou comercializável.

PRESTÍGIO

A isso se deve seu enorme prestígio no Ocidente, sendo sempre mais reconhecida e determinante à percepção atual, articulando filosofia, psicanálise, política e economia. A irradiação ocorre ainda que não se entenda sua potência singular e banalmente enquadre-a como "terapêutica".

Em muitos cantos o provincianismo blinda compreensões da importância global do acontecimento Lygia Clark. Sempre situamos autores locais em linha do tempo inferior no paralelo à arte mundial, mas agora diferenças desapareceram na arte global. Entender a mudança como determinação econômica de nosso desempenho é desprezar parte significativa do que acontece.

Assim, escapa ao comentário ligeiro de Flávio Moura o que é sutilmente complexo. Não percebe que tal "Arquivo" refrata mesmices na recepção empobrecida da obra e do contexto experimental para que ressurjam aspectos vitais de Lygia Clark. Curioso que ele não se dê conta de que a caixa de DVDs, vozes e textos, inventa meios ao discurso crítico, inclusive no silenciar, gerando parâmetros para uma história da arte não capturável em transações domésticas do acontecimento.

CONTRAPONTO

No trabalho cuidadoso de Rolnik faz-se contraponto ao problemático processo de consagração de Lygia -fenômeno que ela acompanha de perto. A reconsideração de valores operada confronta hierarquias do conhecimento; forma consistente a reverter esvaziamentos de sentido em playgrounds museológicos. O audiovisual, que, no Brasil, raras vezes veicula inteligência, ali foge a fórmulas do documentário televisivo sobre intrigante personagem. Um "projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e de seu contexto", como diz Rolnik.

A análise sociologizante da resenha, adjetivando em vez de julgar, supostamente contraria equações mercantis da arte, santificação de Lygia e apagamento da heterogeneidade. Se houver fundamento intelectual substantivo para tanto, este estaria justamente na delicada pesquisa ali reproduzida.

Ocorre que Moura optou por ilustrar sua hipótese. Não discordaria dela, mas é necessário exemplo e método adequado para dar alcance à crítica da fetichização da arte brasileira em feiras e redes de poder transnacionais - fenômeno de grande interesse a se pensar, aliás.

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