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Reportagem

Questão de ordem

A esquerda começa a discutir os justiçamentos

LUCAS FERRAZ

RESUMO Tabu por quatro décadas, os justiçamentos entram na pauta da esquerda. Embora faça, em livro, críticas incisivas à prática, Bernardo Kucinski vê "diversionismo" na discussão. Nilmário Miranda considera as mortes "degeneração política". E a direita infla os números, na intenção de igualar vítimas nos dois lados.

Quarenta anos depois, a esquerda começa a debater os justiçamentos. Em seu recém-lançado "K." [Expressão Popular, 178 págs., R$ 15], romance que tematiza a luta contra a ditadura, o jornalista Bernardo Kucinski narra a história de um jovem casal: uma professora de química da Universidade de São Paulo e um físico que trabalha na iniciativa privada. Eles desaparecem misteriosamente em 1974, durante uma das fases mais violentas da ditadura militar.

O livro é um dos 60 primeiros pré-selecionados para o Prêmio Portugal Telecom, um dos mais importantes do país, com prêmios que podem chegar a R$ 100 mil.

Jornalista e professor, Kucinski trabalhou no Palácio do Planalto, no primeiro mandato do governo Lula (2003-07), como assessor do presidente, elaborando uma crítica diária da imprensa e sobre a conjuntura do país.

Sob a narrativa ficcional -ou "transcendental", como o autor prefere-, a história contada é a de sua irmã, Ana Rosa Kucinski Silva, e seu marido, Wilson Silva. Militantes da ALN, os dois foram vistos pela última vez em abril de 1974, nos arredores da praça da República, no centro de São Paulo. O casal integra a lista de desaparecidos políticos.

Um dos capítulos finais, "Mensagem ao companheiro Klemente", é uma carta de três páginas que muitos ex-militantes pensaram ser real, endereçada a Carlos Eugênio Paz, o Clemente, um dos últimos comandantes da ALN.

A missiva é repleta de críticas à "cegueira" da organização naquele momento de intensa repressão, caminhando quase para um suicídio consciente, com um "sacrifício inútil" de muitas vidas.

O relato, assinado por um certo "Rodriguez", interpela "Klemente" sobre mortes como a de Márcio Leite de Toledo.

"As últimas 'quedas' [prisões] provam o que nós já desconfiávamos: o Márcio não era o informante. Ele foi executado porque havia pedido à Coordenação Nacional que o deixasse se afastar. A organização mentiu no comunicado. Márcio não foi executado para resguardar a Organização. Foi executado para dar um recado: quem vacilar vai ser julgado como traidor".

A carta critica ainda aqueles justiçamentos cujas vítimas morreram por delatar companheiros em sessões de tortura: "O recado era que quem 'abre' [delata], mesmo sob tortura, é um traidor. Como se fosse possível julgar quem foi torturado. Criaram um tabu em torno do assunto".

Mais adiante, ele escreve: "Ficamos cegos; totalmente alienados da realidade, obcecados pela luta armada".

Segundo o narrador, até na "justiça capitalista, quando não há unanimidade, não se condena à morte", referindo-se ao "tribunal revolucionário" que decidiu pela morte de Márcio.

Um dos "juízes" que participou da decisão, amigo da vítima, foi contra a execução. "Vocês condenaram sem prova, sem crime tipificado. Incorporaram o método da ditadura até na linguagem da política; no comunicado a Organização chama Márcio de 'elemento'".

Procurado pela Folha para comentar a crítica feita no livro à atitude da esquerda em relação aos justiçamentos, Bernardo Kucinski não se dispôs a falar do tema e disse que pôs no livro tudo o que pensa a respeito.

"Não é um assunto importante na atual conjuntura, é um tema diversionista, típico da política editorial da Folha nos últimos anos", disse. "O importante é explicar os crimes da ditadura e os métodos usados pelos militares para tantas atrocidades."

Questionado se os justiçamentos poderiam ser considerados crimes da ditadura, mesmo não tendo sido cometidos pelo Estado, Kucinski disse: "Não sei, não quero entrar nessa discussão".

NILMÁRIO Ex-ministro de Direitos Humanos no governo Lula, Nilmário Miranda é um dos poucos à esquerda que fala do tema sem exaltações. E diz que o assunto deve ser tirado do limbo.

Nos anos 70, Miranda militou na Polop (Organização Revolucionária Marxista - Política Operária), tendo ficado preso por três anos e meio.

Já nos anos 1990, quando era deputado federal pelo PT e presidiu a Comissão Externa para os Mortos e Desaparecidos Políticos da Câmara, Miranda propôs uma legislação semelhante à do Chile.

Segundo a proposta, a lei abrangeria não só os mortos e desaparecidos pela repressão do Estado, mas também em decorrência de violência política. Isso permitiria incluir os "justiçados" e até as vítimas civis de balas perdidas em ações armadas.

"O justiçamento é incômodo, ninguém gosta de discutir. Não há como igualar isso aos crimes do Estado", afirma. "Mas esse é um lado totalmente 'dark' da resistência. É uma forma de degeneração política."

Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e coautor do livro "Dos Filhos deste Solo" (Boitempo, 1999), importante levantamento de mortos e desaparecidos, ele diz que sempre se "incomodou" com a morte de Márcio Leite de Toledo.

"Essas pessoas foram vítimas da violência política provocada por um ambiente de autoritarismo", diz Miranda. "É preciso encerrar essa questão. As pessoas falam que tem muita coisa para fazer, poderiam começar levantando esses casos."

"O recado era que quem 'abre' [delata], mesmo sob tortura, é um traidor. Como se fosse possível julgar quem foi torturado. [...]Incorporaram o método do terror da própria ditadura", escreve Kucinski

"O justiçamento é incômodo, ninguém gosta de discutir. Não há como igualar isso aos crimes do Estado", disse Nilmário Miranda, um dos poucos a falar abertamente do tema

Os crimes da direita na conta da esquerda

Ao inflar os crimes da esquerda na tentativa de igualar os dois lados, militares difundiram nos últimos anos listas de supostos justiçamentos, algumas com até 30 nomes. Francisco, Márcio, Carlos e Salatiel estão nelas, além de nomes desconhecidos ou sem vínculo com as organizações indicadas. Muitos foram incluídos maldosamente.

É o caso de Ari da Rocha Miranda, morto acidentalmente em uma ação da ALN, em junho de 1970. Baleado por um colega ao se posicionar, desastradamente, na linha de tiro, ele não resistiu à hemorragia.

É também o caso de Amaro Luiz de Carvalho, membro do PCR (Partido Comunista Revolucionário) e líder camponês de Pernambuco. Segundo livros e sites (tais como o de Carlos Alberto Brilhante Ustra ou o da organização "Terrorismo Nunca Mais"), Amaro foi justiçado por envenenamento, na Casa de Detenção do Recife, em agosto de 1971, por colegas de organização. A afirmação é falsa.

Amaro morreu um mês antes de deixar a prisão. Odiado pelos usineiros locais, era um dos nomes mais visados no Estado. Documentos indicam que o delegado Fleury esteve na Casa de Detenção na semana em que Amaro morreu, mas é impossível, pela ausência de provas, relacionar um fato a outro.

Além do depoimento de presos que conviveram com Amaro, a necropsia desmente a versão dos militares, indicando como causa mortis "hemorragia pulmonar, decorrente de traumatismo do tórax, por instrumento contundente". Em 1996, o Estado o reconheceu como um dos mortos da ditadura, assassinado quando estava sob sua responsabilidade. (LF)

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