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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O tabaréu, a tabaroa, sua filha e os estudantes

LEONARDO FRÓES

Cada qual bem mais pachola,

dois moços voltam da escola

após tudo despender

em folganças e em saber.

Ao pousarem por descanso

ao fim de um dia de avanço

na casa de um tabaréu,

num se acende um fogaréu

de amor pela tabaroa

miúda, jeitosa, boa

e difícil de abordar

no seu cristalino olhar.

Mas o moço, assim que a via,

mais a querendo, insistia.

Pôs-se o outro a desejar

a filha, mimo do lar.

E esse até que escolheu bem,

sendo a filha bela e jovem;

dizem que às virgens querer,

leal sendo quem as quer,

promete, por ser primeiro

amor, um prazer certeiro.

A esposa, que ao quarto ia,

no berço um bebê nutria.

O rapaz que a ambiciona

vai atrás, cola-se à dona,

da panela tira, e cala,

o anel de dependurá-la.

Disfarçadamente o enfia

no dedo, e ninguém o via.

À noite comeram todos

de tudo, com fartos modos:

bom leite, queijos, compota,

e os dois só na maciota...

O que a amava impunha à dama

um olhar que explodia em chama:

que dela não despegava

e, a perseguindo, atiçava.

Já o bobo do tabaréu,

sem cuidar do que era seu,

sem notar nada de mais

no jeito dos comensais,

resolve fazer a cama

dos moços de incerta fama

no quarto onde dormiria

com toda sua família.

Pondo lenha na lareira,

depois foi deitar-se à beira

do seu leito quente. Ao lado,

fofa em catre perfumado,

deitou-se a filha solteira,

somente a beleza, inteira!

Seu galã não vacilou:

assim que o sono pegou

nos outros, ele, rolando

no corpo e não se aguentando,

vai pra cama da mocinha

e em deleite ali se aninha.

Logo encosta na donzela,

a seus contornos se atrela.

Mas ela, tendo a coberta

de si puxada, desperta

e emite a reclamação:

"Quem em mim meteu a mão?

Quem ousou me descobrir,

queira já, por Deus, partir!"

Consigo então, mais dengosa,

ei-la a perguntar curiosa:

"De que coisa anda à procura

quem me apalpa e aperta e fura?"

O moço, surpreendido,

sussurra no seu ouvido:

"Bela dama, por Jesus,

caluda, ânimo, sus!

A paixão por vós é cega,

mas se vosso pai nos pega

pode dar um bafafá,

se ele deduzir que eu já

por me achar ao vosso lado

cometo um grave pecado.

Silêncio! Se o concederdes,

se a mim este prazer derdes,

grande bem vos será feito

e este anel de tanto efeito

será vosso, além do mais,

se a mim vos abandonais.

Olhai só como é pesado,

precioso e abrilhantado.

Mas, como não cabe bem

no meu dedo, ao vosso vem".

E lhe passa o anel de lata

da panelinha barata.

Ela jura o não querer,

mas ele, querendo-a ter,

mais se achega. Os dois embolam.

Desentendidos, se colam,

e ele, ao sabor das mexidas,

com ela às suas sacudidas,

vão-se os dois pelas alturas

de suas doces loucuras.

Nisso então, entre gemidos,

ganidos, risos contidos,

quanto mais um moço amava

mais no outro vontade dava

de se atracar com a patroa,

de se unir à tabaroa

que, dormindo, suspirava

mais além de onde ele estava.

Eis que na oportunidade,

plena ainda a escuridade,

levantou-se o tabaréu

e, sem fazer escarcéu

nesse instante, a tatear,

foi ao banheiro mijar.

O rapaz, todo agitado,

tira o berço antes colado

à cama do dono e o leva,

sorrateiro pela treva,

para junto do outro leito

onde ele próprio, sem jeito,

até que tentou dormir.

Mas, sendo tentado a agir,

seu plano deu resultado:

o patrão abobalhado,

ao voltar cambaleando

de sono, foi se amparando,

no berço se orientou

e por lá mesmo ficou:

na primeira cama quente

que ele encontrou pela frente,

desabou. E o rapazola,

despistando-o pela cola,

foi direto à tabaroa,

aquela mulher tão boa

que papou três vezes logo

e a qual reagiu com fogo,

tomando-o por seu marido,

pasmem, rejuvenescido.

"Mas, homem, que bruto estás",

dizia ela ao rapaz,

como que ao seu tabaréu,

sentindo-se em pleno céu

nos apertões tão robustos,

nas penetrações, nos sustos

que ela foi levando e dando

até o dia ir clareando.

Só aí o babaquara

do marido, cara a cara,

pode notar finalmente

a trapalhada indecente.

"Alto lá!", grita o bicorno

causando certo transtorno

ao desenlace dos pares.

Mas era clamar aos ares,

porque os moços, saciados

de gozo, e já tarimbados,

correram na confusão

que o marido armou, e então,

por entre possantes berros

de desagravo por erros,

entre uais de uma algazarra

das duas depois da farra,

os dois, ainda mais pacholas

do saber de tais escolas,

já tinham, a essa altura

de sua audaz aventura,

pegado de novo a estrada

em fuga precipitada.

"Papamos duas, papai",

diz o que em último vai,

fazendo ao velho caretas

e, às damas, umas piruetas.

SOBRE O TEXTO Escritos desde o fim do século 12, os "fabliaux", minifabulações ou pequenos contos rimados, são um gênero bem definido da literatura medieval francesa. Há nos textos um espírito licencioso e satírico sobre a ingenuidade, a esperteza e a tentação. O marido enganado, o padre fornicador, mulheres cheias de desejos e ardis, refinados pilantras e jovens estudantes travessos são figuras destacadas entre os personagens. Jean Bodel é um dos principais autores do gênero. Seu original, aqui adaptado, se encontra, seguido de uma tradução literal para o francês moderno por Rosanna Brusegan, sem rima nem métrica, no livro "Fabliaux" (10/18, Bibliothèque Médiévale, Paris, 1994) e em outras antologias dedicadas à época.

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