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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Vovô Juca e Miguilim

Curvelo, anos 1950

SÉRGIO ABRANCHES

Guimarães Rosa é uma influência quase atávica, meio mágica. Nós somos do mesmo pedaço do sertão cerrado mineiro. Nossas biografias têm uma conexão de profunda significação para mim e consequências importantes para Guimarães.

Meu bisavô, avô de minha mãe, era um excepcional médico, em Curvelo, cidade vizinha à Cordisburgo de Guimarães. Era "o médico do Curvelo", desses que o interior raramente tem, respeitado pela comunidade médica mineira como "par inter pares". De formação germânica, era austero e distante. Mas sabia deixar claras suas preferências e seu afeto.

Um dos gestos dele que mais me encantavam era o de me entregar um novo estilingue -falávamos bodoque em Curvelo-, na minha infância, sempre que eu chegava para passar as férias.

Ele escolhia a melhor forquilha, o melhor pedaço de couro, a mais elástica câmera de pneu, tudo cortado meticulosamente com seu canivete afiado. Minha mãe, sempre cheia de cuidados, proibia tudo o que lhe parecia perigoso. Bodoque, então, nem pensar.

Chegávamos à casa de "vovô Juca", ele nos beijava e me dava o novo bodoque, de alta precisão para estilingues artesanais, que eu ostentaria pendurado no pescoço como um colar de galardão.

Sua autoridade de patriarca anulava e calava toda contra-ordem. Se dizia podia, então podia. Se dizia não, era não, universalmente, obediência geral. Logo bodoque podia e pronto.

"Não pode matar passarinho, é só para colher frutas", dizia.

A precisão era necessária, pois, para colher frutas sem estragá-las, era preciso atingir o ponto mínimo que unia o talo à fruta. Assim colhia mangas, laranjas e mexericas.

Ele nunca me contou de sua vida. O que sei e sabia me foi contado por minha avó e por minha mãe.

Por isso, foi com espanto e maravilhamento que o encontrei, inesperado e desconhecido, ao final da história de "Manuelzão e Miguilim": o doutor que descobre que Miguilim é curto da vista, lhe empresta os óculos redondos e elimina momentaneamente sua miopia. José Lourenço Vianna, o médico do Curvelo, meu bisavô, entrava a cavalo na história de Miguilim!

"Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia."

Essa descoberta foi, infelizmente tardia. Aconteceu seis meses depois de ele ter morrido, quando eu tinha 16 anos. Acompanhei seus últimos momentos e nunca me esqueci do olhar de amor, orgulho e gratidão, em seus olhinhos muito azuis. O orgulho vinha das conversas longas que tínhamos, eu falando da mais variadas coisas e ele ouvindo, com a vida por um fio, sem forças para falar muito, poupando fôlego. Disse à minha mãe que eu havia me tornando um jovem muito culto.

Queria tê-lo interrogado, aflito de curiosidade, maravilhado e orgulhoso, sobre como chegou ao Mutum para descobrir a miopia de Miguilim.

Descobri depois que sua jornada até o Mutum era, na verdade, a transposição literária da gratidão de Guimarães Rosa ao médico, meu bisavô, que, em sua casa de Cordisburgo, em visita ao seu Rosa, o pai, descobriu que aquele menino predestinado a ser o maior entre os maiores da literatura brasileira era míope.

E lhe emprestou seus óculos redondinhos e ele viu que o seu mundo de Cordisburgo, o qual conhecia por partes, micropedaços que enxergava ajoelhado nas folhagens e nas pedras, sempre muito de perto, sem nunca perceber o conjunto com precisão, era bonito. "O Mutum era bonito! Agora ele sabia". Miguilim, reproduz aquela descoberta infantil crucial de Guimarães Rosa.

Na minha adolescência, mergulhava nos livros de Guimarães sempre com a sensação de encontrar ecos na minha alma. Ele via com muito mais poesia, profundidade e exatidão aquelas coisas do sertão que me impregnaram de sensações indeléveis e se inscreveram em minha memória inapagáveis.

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