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Imaginação

PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

O último recurso

VICTOR HERINGER

O município de Santa Maria Madalena, além de ter o terceiro melhor clima do país, é muito silencioso. Portanto, quando o telefone da casa de d. Letícia tocou no meio da noite, até os vizinhos mais afastados ficaram sabendo que alguém tinha morrido, porque o telefone só toca assim de madrugada quando alguém morreu. Aqueles com maior capacidade auditiva e senso de direção mais apurado logo identificaram a casa que em breve estaria de luto, e dois deles murmuraram uma prece ao defunto antes de voltar a dormir. Quatro ou cinco, no entanto, excitados pela novidade, telefonaram para outros quatro ou cinco, que telefonaram para outros quatro ou cinco. Com o estardalhaço telefônico, o município inteiro acordou, e não demorou até que alguém ligasse para Conceição, a empregada -d. Letícia não conversava com ninguém-, para confirmar o boato. A velha respondeu com seu "ughrrum" característico, disse que podia ser um dos sobrinhos-netos, vestiu-se e foi ate o sítio. Nos dias seguintes, tentou desfazer o mal-entendido: dizia a quem encontrasse pelas ruas que ninguém da família de d. Letícia havia morrido. Mas, como não é um município tão pequeno, a notícia se espalhou e fincou raízes. Não adiantava desmentir. Benjamim, o sobrinho-neto, estava irremediavelmente morto para eles.

Quando d. Letícia atendeu, ainda esfregando os olhos, demorou a distinguir a voz de uma mulher abafada pelos gritos de um homem. Levou mais alguns segundos para entender quem eram. O homem pedia ajuda, dizia que Deus é, era, gago, nada era engraçado, nada era engraçado, nada era engraçado, nada era engraçado. A mulher também pedia ajuda, mas de forma coerente: sabia seu nome, sabia onde morava e que ela era a última das irmãs Costa e Oliveira. No entanto, só quando a voz disse que seu filho estava morrendo de desgosto, d. Letícia percebeu que eram seus parentes. Acendeu todas as luzes da casa, confirmando a funesta aposta dos vizinhos, e correu para buscar seus cadernos. Ninguém acende todas as luzes da casa no meio da noite, a não ser em caso de morte na família. A mãe foi enumerando os sintomas: febre alta, alucinações, choro convulsivo. Já na sala, com os cadernos a mão, d. Letícia ouviu o sobrinho-neto soltar uma gargalhada funda, como se estivesse conversando com belzebu e belzebu tivesse dito algo bastante curioso.

- Tomo três, seção cinco - disse de um estalo.

- O quê? - perguntou a mãe

- Tomo... três... seção... cinco. Seção... seção... Aqui.

Todos os 35 cadernos, ou tomos, de d. Letícia estampavam o mesmo título nas capas: "Breve e Muito Concisa História da Família Costa e Oliveira". Fruto de décadas de pesquisa, e à época com mais de 300 páginas, o trabalho consistia basicamente em anotar nome e causa mortis de todos os Costa e Oliveira com que se deparava em documentos históricos ou na memória, na própria e na dos outros. Além do nome, de uma pequena nota biográfica e da espécie de desgosto responsável pelo óbito, d. Letícia anexava em seus cadernos fotografias, recortes de jornal, anedotas e tudo que de mais relevante encontrava a respeito do defunto em questão. Após décadas de investigação obstinada, havia chegado até a origem da família e da doença, o primeiro Costa e Oliveira a aportar no país, um lusitano que, a julgar por seu diário pessoal, morrera do desgosto de ter que viver longe da amada. Em seu testamento, d. Letícia deixava instruções claras para que a inserissem no catálogo dos desgostosos, de modo que ficasse completo, como manda o bom senso metodológico.

Entretanto, ainda faltava organizar as anotações para escrever uma teoria geral do desgosto, sua suposta missão de vida, que classificaria todos os tipos de desgosto, seus sintomas e paliativos, além de explicar por que essa epidemia, já quase erradicada no país desde o condoído século 19, ainda corria larga no sangue dos Costa e Oliveira, matando com dó, mas sem piedade. Consideraria também a possibilidade de a epidemia cruzar as fronteiras da família e se alastrar pelo mundo novamente, como a peste bubônica. Segundo suas anotações, baseadas especialmente na obra do monge Mendel, isso estava prestes a acontecer. Caso nenhuma providência fosse tomada, o mundo inteiro se acabaria em suspiros desesperados.

Em 2007, quando d. Noemi telefonou no meio da noite para pedir ajuda, d. Letícia ainda não sabia exatamente que tipo de providência seria necessária para impedir que a peste se espalhasse. Por ora, entretinha a vaga ideia messiânica de que só um legítimo Costa e Oliveira seria capaz de salvar o mundo da doença, pois veneno com veneno se combate. Mas estava iniciando seus estudos epidemiológicos; era somente questão de tempo, portanto, até chegar a alguma conclusão sólida. O que d. Letícia não poderia prever, talvez em razão da prepotência advinda dos estudos científicos amadores, é que morreria, dois anos mais tarde, do desgosto de não ter concluído nada.

No caso do menino, porém, sabia perfeitamente o que fazer.

Seu sobrinho-neto era um desgostoso atrabiliário. Um melancólico. Os sintomas eram claros: estava com a pele enegrecida, tinha ardências no estômago, insônia e gritava porque ouvia um zumbido terrível na orelha esquerda. Na seção cinco do tomo três da "Breve e Muito Concisa História da Família Costa e Oliveira", d. Letícia se detinha na figura do desgostoso melancólico, o tipo de desgostoso que sofre a vida inteira, aos pingos, contrariamente aos desgostosos explosivos, por exemplo, que morrem de um só golpe de infortúnio (rompimento amoroso, bancarrota, acidente doméstico, entre outros), ou aos desgostosos maníacos, que morrem por não saber o motivo de sua tristeza. [...]

Deixando momentaneamente de lado a neutralidade típica do cientista, d. Letícia chegava a lamentar -no tomo 5, seção 3- a sorte dos pobres Costa e Oliveira que nasceram desgostosos melancólicos. Eram condenados desde a mais tenra idade a sofrer de amargura, inveja, amoralidade, prisão de ventre, arroto ácido, sonhos macabros, histeria, demência, epilepsia, lepra, hemorróidas, misantropia, sarcasmo, sarna, esperteza e mania suicida. [...] Como todos os Costa e Oliveira, o sobrinho-neto estava fadado a morrer de desgosto, mas seu caso era pior, pois morreria em banho-maria, de um desgosto ininterrupto. Poderia tentar abrandar as angústias, mas o rapaz deveria ter em mente que, até que se descobrisse a cura, o resultado final era inevitável.

Os paliativos recomendados por d. Letícia incluíam dormir de bruços, ingerir pouco sal, assistir muita TV, chá de bertalha ou de hortelã, fígado de ganso, diazepam, compressas mornas na testa, retenção do sêmen e um emprego burocrático. Aconselhasse também, disse a d. Noemi, evitar golpes de vento, música barroca, trufas, gengibre e qualquer atividade que estimule a memória:

- O que o seu menino precisa é esquecer de si mesmo; os desgostosos melancólicos são ególatras de maior marca. É a natureza deles. O melhor é que a senhora deixe ele em paz...

E, assumindo um tom profético:

- O grande problema não é a doença da família, mas o que ela vai fazer quando começar a se espalhar, Noemi querida, porqu-

D. Noemi desligou o telefone. Apesar de ter passado anos afastada das demais irmãs, d. Letícia tinha o mesmo desagradável habito de só chamar as pessoas de "querido(a)" quando estava prestes a dizer algo que ninguém queria ouvir.

SOBRE O TEXTO Trecho de "Glória", do carioca Victor Heringer, 24, previsto para outubro pela 7Letras -que publicou, do mesmo autor, "Automatógrafo" (poemas). O romance acompanha a história de três irmãos após a morte do pai.

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