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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Meu professor de lógica

São Paulo, 1998

ANTONIO PRATA

A frase que se lê ao lado (ou melhor, que não se lê) talvez tenha sido a última escrita pelo grande romancista mineiro Walter Campos de Carvalho (1916-98).

"Sobre a Bulgária, é?", foi o que ele grafou na primeira página do livro "Bulgária Contemporânea", quando pedi que o autografasse ao final de nossa segunda e última entrevista, em 1998. Ele tinha 82 anos, eu acabava de completar 20. Cinco dias depois, ele morreu.

Campos de Carvalho não é o autor de "Bulgária Contemporânea", mas de "O Púcaro Búlgaro", história de um sujeito que, tomado por "espanto geonomástico", dá-se conta do quão curiosa é a existência da Bulgária, larga tudo e vai organizar uma expedição para descobrir (ou, se preciso for, inventar) o abstruso país do Leste Europeu.

"Se a Bulgária existe, então a cidade de Sófia terá que fatalmente existir. Este o único ponto no qual parecem assentir os que negam e os que defendem intransigentemente a existência daquele amorável país, desde os tempos antediluvianos até os dias pré-diluvianos de hoje". Ao protagonista juntam-se, entre outros, o professor Radamés Stepanovicinsky (mestre de berimbau no conservatório de Varsóvia), Ivo que viu a uva (descendente direto do sábio hindu que inventou o zero, sempre a cobrar da humanidade seus royalties) e Pernacchio (para quem a Torre de Pisa não está torta; o mundo é que está).

Campos de Carvalho era primo-irmão de minha avó e cresci ouvindo meu pai falar de seus livros, mas só fui lê-los nos tempos antediluvianos e apocalípticos da adolescência, quando, perdido entre os mistérios do amor e da tabela periódica, eu começava a desconfiar de que o mundo não fazia muito sentido. A epifania literária foi como uma libertação: se a Bulgária não existe, então tudo é permitido.

Os leitores de Campos de Carvalho sempre foram poucos, mas apaixonados, de modo que tenho mais de uma amizade nascida em razão de seus livros.

Um desses amigos é o poeta Sérgio Cohn, que, em 1997, sabendo do meu parentesco com o escritor, sugeriu que o entrevistássemos para a "Azougue", revista de poesia que editava.

A entrevista foi um tanto frustrante. Esperávamos encontrar um barão de Münchhausen, um Don Quixote, um cronópio: demos com um velho amargurado, que falava pouco, tossia muito e afirmava que, desde a publicação do "O Púcaro", em 1964, não escrevera nem lera mais coisa alguma.

Só em casa, ao transcrevermos as fitas, percebemos o humor, reluzindo como uma navalha sob o tapete de amargura.

"Após tanto tempo, afinal, concluiu se a Bulgária existe ou não?". "Não existe. É uma quimera". "Algum outro país não existe?". "A Argentina. Estive lá há alguns anos: não me convenci. Fui a um cassino. O cassino existe. Deixei todo meu dinheiro lá".

No ano seguinte, o "Estadão" pediu a meu pai, Mario Prata, que fizesse uma entrevista com Campos de Carvalho.

Num ato de generosidade e nepotismo, ele sugeriu enviar o filho. Esta segunda entrevista foi ainda mais difícil.

"Não tenho nada a acrescentar ao que já disse", repetia o escritor, vez após outra, "Tudo o que sei é velho", "A vida, depois dos 80, não reserva mais alegria nenhuma". O único momento em que deixou escapar uma réstia de ironia foi quando lhe mostrei o "Bulgária Contemporânea", ganho dias antes de um outro amigo bulgarófilo. Pedi para que me autografasse e, antes de assinar, escreveu: "Sobre a Bulgária, é?".

Cinco dias depois, 10 de abril, Sexta-Feira da Paixão, Walter (que dizia não crer em Deus nem crer que Deus cresse nele) saiu para tomar um sorvete, sentiu-se mal e morreu do coração. Seu caixão foi carregado por mim, meu pai, um primo cujo nome esqueci e pelo motorista do rabecão, um bigodudo chamado Jesus.

Triste, mas não de todo inapropriado para quem começou seu primeiro romance afirmando: "Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa -e qual defesa seria mais legítima?- logrei ser absolvido por cinco votos contra dois e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris".

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