São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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CRÍTICA

Nabuco absoluto

Balanço de uma efeméride

RESUMO
A atuação de Joaquim Nabuco (1849-1910) como político, diplomata e homem de letras é objeto de livros, ensaios e documentário, lançados por ocasião de seus cem anos de morte. A presença de seu pensamento transcende o teor protocolar da efeméride e se impõe como chave de interpretação do Brasil do século 21.

ANGELA ALONSO

"NÃO É VERDADE que a nossa gente esquecesse V.; falamos muita vez a seu respeito e recordamos dias passados." Assim Machado de Assis, em carta de 1º de agosto de 1908, aplacava a queixa de seu dileto Joaquim Nabuco, que vivia, e logo morreria, em Washington, em intensa saudade dos amigos e do país. Machado estava, como sempre, certo. Ninguém se esqueceu de Nabuco. Muito pelo contrário. Um século depois de sua morte, está lá, bem posto, no panteão de ícones nacionais.
De tempos em tempos, as nações inventam heróis, como Tiradentes, promovido de insurreto a ídolo republicano no finzinho do Império, e Zumbi, recentemente sacramentado. Nabuco não foi desses, primeiro nublados, para então ganhar incenso; foi celebrado por coetâneos e pósteros.
O Google atesta sua imorredoura popularidade: Nabuco nome de faculdade, de rua, de cidade. Nabuco estátua, prêmio, cátedra. Nabuco em exposição, em cordel, em música -de Caetano Veloso. Nabuco "darling" da esquerda e da direita.
Por que será?

MÉRITOS Em larga medida, Nabuco sobrevive por seus méritos. Personalidade cativante; estrela da campanha pela Abolição da escravidão; intelectual de primeiro time, nas letras, na história, no ensaísmo; diplomata modelo, que fez bonito entre os estrangeiros, sem deixar de atinar para as singularidades brasileiras.
Homem completo, Nabuco não foi o tipo com bala única na agulha. Tinha carteira cheia de qualidades e delas lançou mão conforme suas circunstâncias. Inventou-se e reinventou-se, consagrado em todos os campos pelos quais se aventurou.
Começou dândi, dedicado à elegância, aos versos e às conquistas amorosas, logo reconhecido gentleman de primeiro naipe da sociedade aristocrática. Ascendeu então a líder abolicionista, respeitado no Parlamento e ungido pop star da causa, com seu nome em cigarros, chapéus, cervejas, ovacionado em teatros e ruas.
Mas a carreira política ruiu com o Império. Recusando-se a aderir à República, usou o ostracismo político para se recriar como intelectual monarquista. Consagrou-se historiador com "Um Estadista do Império - Nabuco de Araújo: sua Vida, suas Opiniões, sua Época", seu livro mais aclamado em vida. Fincou um pé no ensaio e pôs o outro na literatura, ajudando o amigo lá do começo da nossa conversa a arquitetar a Academia Brasileira de Letras.
Trocou os livros pelo grande mundo, em 1899, aceitando missão diplomática primeiro na Europa, depois, em Washington. Primeiro embaixador nosso entre os ianques, uma vez mais se repaginou: virou panamericanista, propalando a aproximação do Brasil com os Estados Unidos, em conferências que lhe restituíram por lá o calor do público que já obtivera aqui.
Tantos feitos forjaram uma reputação. Ou melhor, várias: Nabuco sedutor irresistível, Nabuco político radical, Nabuco intérprete do Brasil, Nabuco embaixador cosmopolita. Mas, ao contrário do que a unanimidade de 2010 encaminha supor, seu lugar no panteão nacional não esteve sempre assegurado.

FREYRE É o que se entrevê nos ensaios curtos e saborosos de outro incensado do ano, Gilberto Freyre, coligidos sob o título "Em Torno de Joaquim Nabuco" [A Girafa, 336 págs., R$ 35]. São peças que, para ficar no vocabulário freyriano, leem-se gostosamente. Freyre sabe o que diz e sabe dizer. Sua admiração meio devocional, algo narcísica, não atrapalha seu olho inteligente de levantar lebres sobre personalidade, carreira, contexto e ideias de Nabuco que são o pilar de todas as interpretações posteriores.
Mas o editor Edson Nery da Fonseca, que sabe tudo de Freyre e de Pernambuco, podia nos ter dado apresentação mais comprida, esclarecendo os critérios de seleção (por que ficou de fora "Joaquim Nabuco e as Reformas Sociais", aliás, prefácio da reedição de "O Abolicionismo", publicado este ano pela BestBolso?) e o contexto dos textos, muitos garimpados em jornal.
Organizados cronologicamente, os ensaios descortinariam o intuito de Freyre ao escrevê-los: 1949 era o centenário de nascimento de Nabuco e de Rui Barbosa, mas, enquanto para o segundo se planejavam celebrações oficiais, o primeiro estava de escanteio.
Verdade que Carolina Nabuco escrevera biografia recatada do pai e um ou outro livro sobre Nabuco vinha pingando, mas suas obras circulavam pouco e a memória de seus feitos desbotava. Foi quando Gilberto Freyre lançou verdadeira operação de consagração, como mostram seus ensaios de 1947 a 1950. Como Nabuco, Freyre tinha dupla âncora, de intelectual e de político.
Deputado federal, amealhou recursos públicos para celebrações, instigou Luiz Vianna Filho a produzir nova biografia (publicada em 1949), fomentou a publicação das obras completas (que até hoje não o são) e coligiu discursos parlamentares de Nabuco -um dos mais alentados artigos de "Em Torno de Joaquim Nabuco" é justo a apresentação de tal volume.
Freyre fuçou ainda diário, cartas, fotos- aliás, são muito inspirados os ensaios sobre o retratos de Nabuco, espécie de sociologia da fotografia "avant la lettre". São diversos ângulos para valorizar ora a pessoa, ora as ideias, ora as ações do "gigante" Nabuco, candidato forte a ícone nacional na comparação com o "cacogênico" Rui Barbosa.
Esse toque panegírico, somado à sua qualidade de escritos de ocasião (para solenidades, jornais, prefácios etc.), gera repetição -com o que o frequentador de Freyre está acostumadíssimo. Mas a reiteração aqui é calculada para incutir no leitor a sensação da grandeza de Nabuco.
Operação bem-sucedida. Gilberto Freyre emplacou não só celebrações do centenário de nascimento, como uma organização para zelar por sua memória: a Fundação Joaquim Nabuco.

CRAQUES A grandeza de Nabuco é também o ponto no volume caprichado, tipo craque por outro craque, organizado por Evaldo Cabral de Melo. A norma de seleção de textos não foi dar um pouco de tudo, mas muito do que é bom, como diz o título: "Joaquim Nabuco Essencial" [Penguin Companhia, 632 págs., R$ 32].
Cabral de Melo espremeu o sumo de Nabuco, juntando numa só caixa todos os diamantes. A começar por "Massangana", texto mais lírico, mais lindo e mais lido de Joaquim Nabuco. Esse capítulo de "Minha Formação" traz a narrativa nabuquiana de sua formação na sociedade escravista e das razões subjetivas para sua conversão ao abolicionismo.
Afora essa abertura, a coletânea anda cronologicamente. Do magistral "O Abolicionismo" há trecho gordo, com a famosa caracterização da escravidão como instituição total, estruturando economia, sociedade, política e cultura nacionais.
Vêm depois discursos da memorável campanha eleitoral de 1884, quando Nabuco bateu no latifúndio, e dois de três panfletos de 1886, com chispas ao Partido Conservador, que barrava a maré abolicionista.
A Abolição é, então, o eixo dessa primeira parte do volume, na qual há um estranho no ninho: o projeto de monarquia federativa, ao qual Nabuco se agarrou, como monarquista antes que abolicionista, durante o naufrágio do regime.

REPÚBLICA A segunda parte alberga excertos dos livros do começo da República sob o título "textos políticos e historiográficos", dando a impressão de que os "textos abolicionistas" iniciais seriam talvez menos políticos. Outra rubrica possível seria "textos monarquistas", pois os gêmeos "Balmaceda" (reeditado pela Cosac Naify em 2008) e "A Intervenção Estrangeira Durante a Revolta de 1893" são, a um só tempo, reconstrução historiográfica e elogio político do Império.
"Trabalhos de história imediata", é verdade, mas também combate a Floriano Peixoto e seus sequazes, do ângulo de um monarquista enlutado com a derrota para os republicanos na Revolta da Armada (1893-94).
Esses livros saíram encavalados com "Um Estadista do Império", obra magna de Nabuco, ainda imbatível na historiografia do Segundo Reinado [1840-89]. Cabral de Melo meticulosamente pinçou nessa obra enorme, forrada de documentos, repartida em seções meio autônomas, os trechos certos para dar ao leitor preguiçoso de enfrentar suas mais de mil páginas um compacto de 180 e poucas, sem macular estilo, fontes e argumentos.
A seleta, então, honra seu nome, dando a essência de Nabuco. Mas, restrita às grandes obras, a triagem confere tom de coerência, acabamento e propósito a seu pensamento. Textos "menores", como "Camões e os Lusíadas"; "L'Option", drama em versos; "Foi Voulue", de reflexões católicas; e "Pensées Detachées et Souvenirs", seu livro de moral, como os títulos em francês denunciam, dariam ao leitor o lado empoado de Nabuco, seus excessos, seu traço de oitocentista -enquanto "O Direito do Brasil" seria atrativo para diplomatas e demais interessados em questões de fronteiras.
A esses títulos falta decerto o brilho que sobra nos que o editor privilegiou, mas eles iluminariam dilemas, titubeios e escolhas políticos e intelectuais de seu autor. Sem eles, esmaecem-se as contradições de Nabuco, delatadas que estão na foto da capa, uma de suas últimas. Ali, de costas para o motorista de origem africana, o abolicionista foi flagrado em pose senhorial.

DIPLOMATA O fecho desse volume, com três conferências de Nabuco nos Estados Unidos, faz ponte com dois outros, enfocando o diplomata. Depois de resistir à República por uma década, Nabuco tornou-se chefe da legação brasileira em Londres e, depois, primeiro embaixador nosso entre os ianques, empenhado em aproximá-los de nós. Esse seu "panamericanismo" fez sucesso num tour por universidades norte-americanas.
O centenário de sua passagem por Yale e Wisconsin foi o mote de professores dessas universidades, respectivamente Kenneth David Jackson e Severino J. Albuquerque, para armar dois livros numa única caixa: "Conferências sobre Joaquim Nabuco - Joaquim Nabuco em Yale, Centenário das Conferências na Universidade, Ensaios Comemorativos" e "Conferências sobre Joaquim Nabuco - Joaquim Nabuco e Wisconsin, Centenário da Conferência na Universidade, Ensaios Comemorativos" [Bem-Te-Vi, 708 págs., R$ 118].
Albuquerque organizou seu volume sobretudo com diplomatas e brasileiros radicados em universidades norte-americanas, dando um caldo variado: o Nabuco abolicionista (Jeffrey Needell), o estilista (Pedro Meira), o acadêmico e diplomata (Daine Paige, Alfred Boll). Vale ler aí Steven Topik comparando a reputação de Nabuco na diplomacia com o esquecimento de seu amigo e antecessor na representação brasileira em Washington, Salvador de Mendonça.
No volume sob o pulso de Jackson, os anos norte-americanos de Nabuco são o foco principal, caso da análise refinada das conferências de Nabuco pelo próprio Jackson. Já Leslie Bethell, autoridade no fim do tráfico de escravos para o Brasil, e John Schulz, especialista na crise fiscal da Abolição, derivaram para os anos abolicionistas, enquanto Marco Aurélio Nogueira e Jeffrey Needell preferiram corte transversal, um acompanhando as ideias, o outro as ações de Nabuco, ao longo de sua vida pública.

INTELECTUAL ORGÂNICO Nogueira relançou também "O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política - As Desventuras do Liberalismo" [Paz e Terra, 336 págs., R$ 48], repaginando livro publicado em 1984. O argumento central, gramsciano, permanece: o Nabuco abolicionista seria o grande pensador do nosso liberalismo, intelectual orgânico, consciência-limite de seu tempo.
Em novo prefácio, o autor dialoga com a tese alternativa, de Ricardo Salles ("Joaquim Nabuco, um Pensador do Império", Topbooks, 2002), que vê Nabuco antes como intelectual tradicional, de corte conservador. Nogueira pontua confluências, mas as interpretações, rigorosas e vigorosas ambas, são sobretudo contrastantes, uma puxando Nabuco para a praia modernizadora, outra, para a tradicionalista.
No dossiê Joaquim Nabuco que a revista "Novos Estudos Cebrap" [R$ 20; também disponível on-line, em novosestudos.uol.com.br] acaba de pôr na rua, Nogueira também comparece. A figura do intelectual orgânico é agora estendida para abarcar o Nabuco monarquista e diplomata e frisar uma unidade em seu pensamento, que é então usado para discutir a agenda brasileira contemporânea.
Leslie Bethell, ao contrário, ressalta oscilações de Nabuco, que foi primeiro europeísta, avesso aos Estados Unidos, e chegou ao fim da vida ardoroso panamericanista, mantendo, não obstante, visão perenemente negativa da América espanhola.
Nesse dossiê escrevo também eu, mostrando como Nabuco manejou "apoio externo contra resistência interna", ao construir vínculos com a mobilização extraparlamentar e com a rede abolicionista transnacional do final do século 19 para pressionar o Parlamento a fazer a Abolição [leia a íntegra do artigo em folha.com/ilustrissima].

NO PRELO Ainda há o que ser desovado antes que a efeméride se acabe. Bethell e José Murilo de Carvalho (que já editaram a correspondência de Nabuco com abolicionistas ingleses) preparam, em trio com Cícero Sandroni, volume com artigos do Nabuco correspondente estrangeiro (pela editora da ABL). Já K. David Jackson organizou -com esta que vos escreve- coletânea com ensaios resultante de seminário USP/Yale, focalizando os tempos pós-abolicionistas de Nabuco ("Nabuco e a República", pela Topbooks, no prelo).
Não bastasse, Nabuco saltou para além dos livros. A Biblioteca Brasiliana USP (brasiliana.usp.br), dirigida por Pedro Puntoni, está pondo na internet todo o Nabuco de seu acervo, com apresentação e comentários meus para cada obra. Há aí preciosidades cavadas por Mindlin, como "Amour et Dieu", as poesias em francês do jovem Nabuco.
Enfim, há Nabuco por todos os lados. Celebrações em Nova York e no Recife, no Rio e em Roma, em Washington e Londres, em Caxambu e até mesmo na telinha. Alto, bonito, charmoso, teria dado um galã. A TV não chegou a tempo de captar seu carisma, mas fala dele pela boca de especialistas e políticos, que comentam obra, figura, contexto e legado no documentário "Nabuco.doc", dirigido por João Carlos Fontoura, para a TV Senado (o site do Senado promete disponibilizar o vídeo na íntegra em www.senado.gov.br/noticias/tv/hotsites/nabuco/default.html).
Nabuco virou unanimidade. Seu lado vaidoso se comprazeria. Mas, em vida e obra, preferiu sempre a polêmica. Foi abolicionista contra os escravocratas, monarquista contra os republicanos, panamericanista contra europeístas e latino-americanistas, cosmopolita contra os provincianos. Gentleman sim, mas fazendo finca-pé de suas opiniões. Cultivava seguidores, mas adquiria inimigos. Acostumado a ser dissonante, se aportasse entre nós agora, talvez estranhasse a louvação uníssona. Ao contrário do amigo Machado, preferiria a controvérsia.

Freyre sabe o que diz e sabe dizer. Sua admiração meio devocional, algo narcísica, não atrapalha seu olho inteligente de levantar lebres sobre personalidade, carreira, contexto e ideias de Nabuco

A grandeza de Nabuco é também o ponto no volume caprichado, tipo craque por outro craque, organizado por Evaldo Cabral de Melo. A norma de seleção de textos não foi dar um pouco de tudo, mas muito do que é bom

Albuquerque organizou seu volume com diplomatas e brasileiros radicados em universidades americanas, dando um caldo variado: o Nabuco abolicionista, o estilista, o acadêmico e diplomata

No volume sob o pulso de Jackson, os anos norte-americanos de Nabuco são o foco principal, caso da análise refinada das conferências de Nabuco pelo próprio Jackson

Nabuco virou unanimidade. Seu lado vaidoso se comprazeria. Mas preferiu sempre a polêmica. Foi abolicionista contra os escravocratas, monarquista contra os republicanos


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