São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2010

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MÚSICA

A canção e a vaia

A morte da canção e o imortal Tom Jobim

RESUMO
Coletânea inédita de entrevistas de Tom Jobim e ensaio de Santuza Cambraia Naves põem em questão o lugar central da canção popular na cultura brasileira no século 20. A morte da canção é pensada a partir de sua forma canônica, representada pela obra de Jobim, e da desconstrução da "canção crítica" operada pelo tropicalismo.

JOSÉ ROBERTO ZAN
MARCOS NOBRE

SANTUZA CAMBRAIA NAVES começou pelo final. Em seu recém-lançado ensaio "Canção Popular no Brasil" [Civilização Brasileira, 160 págs., R$ 29,90], contou a história da canção a partir do momento atual, marcado pelo debate sobre a morte da narrativa popular de massa que ficou identificada com a cultura brasileira no século 20.
Mas, para não cair em uma generalidade que poderia se mostrar vazia, a socióloga, que se dedica há muitos anos ao estudo da música popular brasileira, de saída estabeleceu que seu objeto não é apenas "a canção", mas o que chama de "canção crítica". Ou seja, o momento em que a canção se tornou reflexiva, que tomou a si mesma também como objeto. E foi aí que a autora acertou a mão.
Explicitou o que, de uma forma ou de outra, permeia o debate sobre a canção no Brasil: sua forma se consolidou nas décadas de 1950 e 1960 e ainda é esse o metro com que se continua a medi-la. Sem desconhecer que as experiências musicais desse período são diversas e variadas, explicitou ainda que a "canção crítica" é a regulagem padrão desse metro em toda discussão sobre a vida e a morte da canção hoje. De modo que talvez seja mais exato dizer que a autora não começou a história pelo fim, mas pelo meio.

CENTRO HISTÓRICO É desse centro histórico de meados do século 20 que se conta a história da canção, um centro que organiza o passado e o futuro que é hoje o presente. A autora vai às origens e, ao transitar pela modinha, o lundu, a valsa e choro, chega ao samba.
Recapitula alguns dos momentos decisivos do seu desenvolvimento, como a passagem do samba maxixado da Cidade Nova para o samba marchado do morro do Estácio, a conversão do gênero em símbolo nacional, que culmina na composição exemplar de Ary Barroso, "Aquarela do Brasil", bem como suas ramificações estilísticas como o samba-enredo, o samba-exaltação e o samba-canção. Tudo para se colocar em condições de reconhecer como precursores da canção crítica os compositores que produziram na época de ascensão do rádio, Noel Rosa, Lamartine Babo e Ary Barroso.
É então que a autora defende a tese central de que o momento de consolidação da "canção crítica", com o tropicalismo, é simultaneamente o início de um processo de "desconstrução da canção". Uma desconstrução que não significa, entretanto, o esgotamento do seu sentido crítico.

ESTÉTICA DO EXCESSO O experimento tropicalista significou de fato uma expansão da ideia de canção. Comprometidos com uma estética do excesso, incorporaram aos aspectos poéticos e musicais o gesto, a performance, a visualidade das capas dos discos, tornadas objetos conceituais.
Os tropicalistas substituíram o compromisso nacional por outras formas de representação do país, passando pela articulação do local com o global, deixando de lado a categoria "povo" em favor da noção de "massa". Apoiados na perspectiva contracultural, adotaram uma concepção ampliada da política, abarcando a crítica a valores e comportamentos.
Coube à geração roqueira dos anos 80 promover novas sínteses, inspiradas nas atitudes "pós-punk" e "new wave". A identificação com o novo público trouxe uma linguagem simples e direta, com a supremacia do "pulso" em detrimento da melodia e da harmonia, quase sempre restrita aos três acordes básicos característicos do gênero. Embora não aprofunde a análise sobre esse aspecto, o texto parece sugerir que, nesse momento, a ideia de crítica como componente essencial da canção começa a se modificar.
Ao final, a autora faz um breve balanço da situação da canção crítica hoje. Não mais um tipo específico e hegemônico de canção, como ocorreu em momentos anteriores, mas uma produção que abre possibilidades para outras formas de crítica. Trabalhando com um acervo de informações e pesquisas ainda incipiente, Santuza faz uma rápida avaliação dos trabalhos de alguns artistas como Adriana Calcanhotto, Paulinho da Viola, Pedro Luís e a Parede e Ricardo Domeneck, na tentativa de identificar não apenas os espaços possíveis da canção crítica no panorama atual, mas as novas configurações que o gênero vem adquirindo nesse contexto.

CÂNONE Ouvida nesse diapasão, a preciosa coletânea de entrevistas de Tom Jobim que a editora Azougue lançará em breve na coleção Encontros poderia soar, sem mais, como pertencente a outra era. Mas é preciso lembrar que a "canção crítica", por mais importante que seja, é somente uma das diferentes formas canônicas que a canção adquiriu ali pelos anos 1950, 1960. Mais que isso, é preciso lembrar que o cânone, no sentido enfático do material musical mais avançado, foi e permanece identificado à obra de Jobim.
O que só torna ainda mais emblemático o momento em que um dos ícones da "canção crítica" se enlaçou com o cânone jobiniano. Foi no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968. Chico Buarque defendeu a sua parceria com Tom Jobim, a canção vencedora "Sabiá". E, como se sabe, foi viva a vaia que acolheu a premiação. Vaia motivada exatamente pela suposta falta de engajamento da canção. Vaia que acabou por impedir também o oposto simétrico, Caetano Veloso, de defender sua música "É Proibido Proibir".
O livro permite ir direto à fonte. Perguntado sobre o episódio em entrevista a "O Pasquim", em 1969, o compositor dá a entender que entrou no concurso a contragosto, assim como Chico Buarque. E sentencia: "Agora, interpretar vaia ou os aplausos é um negócio muito difícil".
Mas Tom Jobim não esconde que é mesmo de outra época. Na mesma entrevista, disse: "Não sou da época de festival". E acrescentou, um pouco adiante: "Esse negócio de 'música para festival' não tem a menor importância".

PROFISSIONAL Jobim se via antes de mais nada como um profissional da música, uma novidade no panorama da música brasileira de então. E vê nos festivais um evento pernicioso para a profissão: "Acontece que a noite no Rio desapareceu. Antigamente, os músicos tinham emprego. Agora, não. Só tem os festivais".
A perspectiva do profissional permeia todas as entrevistas e depoimentos. E acaba por ressaltar elementos que podiam e ainda podem passar por laterais e secundários. Exatamente porque não se pensa Tom Jobim como o "profissional da música" que queria ser.
Em uma das inúmeras vezes em que é confrontado com as "acusações" de plagiar compositores ou de ser pouco "brasileiro", o profissional orgulhoso do seu ofício responde apontando para a partitura de Chopin em cima do piano: "Olha aqui: o negócio de você fazer um acorde menor e aumentar ou diminuir a quinta é mais velho do que o mundo. O 'Prelúdio nº 4', de Chopin, está aí em cima do piano para provar que Tom Jobim não é original, Baden Powell não é original, mas somos todos originais porque estamos na restinga da Marambaia e o ritmo é samba. E o meu negócio é samba, está entendendo?".

DEPOIMENTO Daí a importância do extenso depoimento do Museu da Imagem e do Som do Rio, em 1967. Depoimento coletivo, mas claramente centrado em Jobim, do qual participaram Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Ricardo Cravo Albin, Oscar Niemeyer, Dori Caymmi e Raimundo Wanderley. Quando, para ganhar a vida, Tom se integrou ao meio da música popular no início dos anos 1950, além de atuar como músico da noite, passou a trabalhar em gravações na Continental Discos como arranjador e regente de orquestras.
Naqueles anos, novas tecnologias desenvolvidas no pós-Guerra estavam revolucionando a indústria fonográfica; entre elas, o acetato, o multicanais, a estereofonia e o hi-fi (alta fidelidade). Jobim lembra que no período pré-bossa nova ainda se gravava em 78 rpm, e reconhece, um tanto melancolicamente, o "nível precário" das condições de gravação no Brasil, o que teria levado a "uma série de problemas na música".
Em muitos outros campos, como o cinema ou as artes plásticas no Brasil -basta pensar no cinema novo, por exemplo-, saltos de qualidade estética também estiveram intimamente ligados à exploração criativa das condições precárias de produção. O que mostra que, para entender a canção, é preciso mais do que música e letra. É preciso entender o país. E as condições concretas em que a canção foi e é produzida.
Como resume Jobim no depoimento de 1967, em função da precariedade dos nossos estúdios foi feita uma certa "triagem, necessidade de se trabalhar com menos instrumentos [...] Os americanos estão gravando com oito canais -é possível que com oito canais você possa gravar a escola de samba mesmo como ela é. Porque se você pegar a escola de samba e colocar dentro do estúdio pra gravar, soa como um mar em tempestade [...]. É por isso que a bossa nova -ela teve raízes seríssimas no samba- teve aquela necessidade de limpar um pouco".


Nota
Sobre o mesmo debate, os autores publicaram o ensaio "A Vida Após a Morte da Canção", na revista "Serrote" nº 6 (Instituto Moreira Salles, 224 págs., R$ 29,90).


A autora defende a tese de que a consolidação da "canção crítica", com o tropicalismo, é o início de um processo de desconstrução

O cânone, no sentido enfático do material musical mais avançado, foi e permanece identificado à obra de Tom Jobim


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