São Paulo, domingo, 12 de junho de 2011

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PERFIL

O leitor

Maurice Nadeau, um século de vanguarda literária

RESUMO
Editor, crítico e historiador da literatura, Maurice Nadeau, ainda ativo aos 100, revelou talentos que vão de Henry Miller a Michel Houellebecq. Pioneiro ao publicar o marquês de Sade em 1947, disputou com Pauvert o título de editor moderno do pornógrafo e tornou-se desafeto de André Breton, líder dos surrealistas.


LENEIDE DUARTE-PLON

NO APARTAMENTO do Quartier Latin em que vive desde a década de 40, Maurice Nadeau tem por companhia solitária o gato preto Grisbi. O espaço, grande e claro, é pequeno para os livros, que se esparramam por todos os cômodos. Nas estantes, distingue-se praticamente tudo o que foi publicado na Bibliothèque de La Pléiade, coleção do cânone francês editada desde os anos 30. A profusão de volumes é a fatura de cem anos de vida deste jornalista, escritor, crítico e editor, completados no último dia 21.
Para marcar a data, o mundo intelectual parisiense programou um sem-fim de homenagens àquele que apresentou aos franceses Henry Miller, Malcolm Lowry, Roland Barthes, Samuel Beckett, Georges Bataille, Georges Perec, Jack Kerouac, Raymond Queneau, Claudio Magris e Michel Houellebecq.
Comecemos pelo fim da lista de serviços prestados à literatura. "Houellebecq é um artesão de talento, preocupado em aparecer e ser conhecido", diz Nadeau, que apostou, em 1994, no jovem desconhecido. Houellebecq havia recebido negativas de várias editoras e lhe fez a corte durante meses, até convencê-lo a publicar seu primeiro romance, "Extensão do Domínio da Luta" [Sulina, trad. Juremir Machado da Silva, 142 págs., esgotado]. "Ele sabe contar histórias num estilo sem enfeites, sóbrio, que, no fundo, não me desagrada", comenta.
Apesar de o livro mais recente de Houellebecq, "O Mapa e o Território" (a ser lançado no Brasil em junho, pela Record), ter recebido em 2010 o Goncourt, o mais cobiçado dos prêmios literários franceses, a obra não convence seu primeiro editor: "Não vejo no livro a verdade de uma vida interior da qual nos falava Walter Benjamin. Há temas interessantes, engraçados, mas um pouco fáceis, que cedem à moda de ser contra tudo". A franqueza de Nadeau é proverbial.
"Maurice é um leitor. Sua vida, feita de austeridade, concentração e modéstia, é a vida de um leitor. A leitura é quase um vício para ele, que partilhou conosco a maior parte das descobertas na literatura do século 20, publicando, analisando e dissecando textos do mundo inteiro. Ele não quer saber da origem nem da história pessoal do escritor. O que lhe interessa é o texto", diz a escritora e jornalista Laure Adler, que lançou "Le Chemin de la Vie" (o caminho da vida), livro de entrevistas com Nadeau.
No rol de eventos dedicados a ele, houve espaço para dois documentários: "Maurice Nadeau, Révolution et Littérature", de Gilles Nadeau e Alain Poulanges, e "Maurice Nadeau, Le Chemin de la Vie", de Ruth Zylberman.
Realizado por seu filho Gilles, o primeiro trata do engajamento do intelectual na Resistência ao nazismo, numa célula trotskista, além de se debruçar sobre sua passagem pelo jornal "Combat" como crítico literário. O segundo é um retrato do incansável caça-talentos.

UÍSQUE NA REDAÇÃO A idade provecta não parece pesar sobre o corpo alto e vigoroso de Nadeau. Ele continua a caminhar empertigado e faz passeios semanais no jardim de Luxemburgo, a dois passos de seu apartamento.
Durante a manhã, lê os manuscritos que lhe enviam. À tarde, num andar com vista para o museu Georges Pompidou, trabalha na revista "La Quinzaine Littéraire", que fundou em 1966, e em sua editora. A reunião de pauta acontece às quartas, às 18h, embalada a goles de uísque ""os mais sisudos optam por água mineral Perrier e suco de laranja.
Na "Quinzaine Littéraire", escreve, sem remuneração, a fina flor da intelectualidade francesa. A revista, sem publicidade, vive da fidelidade de seus assinantes. Os colaboradores estrelados sabem que são eles que acumulam prestígio ao deitar críticas nas páginas da "Quinzaine", e não o contrário. As estatísticas hiperbólicas construídas ao longo da carreira (40 mil artigos publicados na "Quinzaine", 500 livros editados, 66 anos de edição) não arrefecem o ânimo de Nadeau, que ignora planos de aposentadoria.
"Poderia ter parado há 40 anos, mas sei que já estaria morto", diz. A descoberta mais recente é Yann Garvoz, jovem canadense que qualifica como "Sade moderno".

SADE Aliás, de Sade Maurice Nadeau entende. Foi ele que, em 1947, retirou o "divino marquês", como o chamam os franceses, do Inferno, a protegidíssima seção de livros eróticos e pornográficos da Biblioteca Nacional.
Durante meses, o editor foi lá copiar textos de Sade, até ter a obra pronta para publicação. "Quando publiquei a antologia de textos filosóficos de Sade, ela foi retirada das livrarias na França. Depois disso, Sade se tornou um autor lido e conhecido", gaba-se Nadeau.
A amizade ""logo degenerada em rivalidade"" com o editor Jean-Jacques Pauvert veio justamente do interesse de ambos pelo escritor, então proscrito.
Salomônica, a cronologia que consta da edição Pléiade das obras completas de Sade menciona, no mesmo ano (1947), a publicação de uma antologia por Nadeau e o início da edição das obras completas por Pauvert.
Além disso, os antagonistas figuram entre os especialistas consultados para a realização do trabalho da Pléiade.
Numa entrevista ao jornal "Le Monde" em 2006, ao ser questionado sobre inimigos, Nadeau respondeu: "Tenho um, Jean-Jacques Pauvert. Mas não sei mais por quê, e ele provavelmente também não".
Outro amigo que virou desafeto foi o poeta André Breton, autor dos "Manifestos do Surrealismo".
Conhecido por seu narcisismo e descontente com a "História do Surrealismo" publicada em 1945 por Maurice Nadeau ""que provavelmente não a escreveu tão bem como ele próprio teria feito"", Breton não esconde seu prazer em demolir Nadeau no artigo "Flagrant Délit" (flagrante delito), de 1949. Nele, o teórico espezinha um erro do então crítico de "Combat", que pensara ter descoberto um poema original de Rimbaud. Quem conta o episódio é Pauvert, em suas memórias. Nadeau anunciava com "falsa modéstia" a novidade: o manuscrito da obra perdida mais célebre de Rimbaud, "La Chasse Spirituelle" [a caça espiritual], teria sido encontrado. Estava com Pascal Pia, diretor de "Combat". A notícia gerou comoção no meio intelectual francês.
Havia, porém, quem questionasse a autenticidade. O erro de avaliação de Nadeau é chamado por Pauvert de "impostura". E Breton, ao denunciar o pastiche, identificado posteriormente como obra de dois jovens comediógrafos, vingava-se do antigo companheiro trotskista e de sua versão da história do surrealismo.
Vinte e cinco anos depois, ao tomar conhecimento da intenção de Pauvert de reeditar o artigo demolidor de Breton, Nadeau teria suplicado a ele que abortasse o projeto. "É preciso levar em conta a inacreditável ingenuidade de Maurice Nadeau [...] Como pôde pensar que eu censuraria Breton em favor dele?", alfineta Pauvert.
"Apesar de não ter mudado nem sequer uma linha, Breton autografou para mim uma reedição dos Manifestos do Surrealismo', enfatizando sua viva estima, que em outros tempos foi amizade'", contemporiza Nadeau.
Sem querer, do meio de seu anedotário Nadeau pinça um episódio que corrobora a imagem inocente colada nele por Pauvert. Conta o editor que, certa vez, dois homens entraram em sua casa, num intervalo de minutos.
Um se apresentou como funcionário da prefeitura de Paris; outro, como policial à caça de um bandido. Por obra de uma mise-en-scène exemplar, os golpistas conseguiram levar dinheiro e pertences do dono do imóvel.

PREJUÍZO Convidado em 1953 por René Julliard, Maurice Nadeau se integrou às Editions Julliard, onde passa a dirigir a revista "Les Lettres Nouvelles" (novas letras), além de uma coleção literária. Depois, vieram as editoras Denoël, Laffont e, por fim, as edições Le Sycomore/Maurice Nadeau.
Seja como assalariado de casas de prestígio, seja à frente de sua própria empresa, Nadeau tem por norma só publicar autores que lhe agradem. A tradução financeira desse rigor era prejuízo para os patrões.
"Julliard sabia que perdia dinheiro com meus autores, mas que a editora ganhava uma aura intelectual", diz. "Meus patrões editores sempre perdiam dinheiro. Acabavam me mandando embora depois de algum tempo." Como escritor, Nadeau também teria do que se orgulhar: seu "Gustave Flaubert Écrivain" ganhou o prêmio da crítica literária em 1969; anterior, "História do Surrealismo" (1945) é referência na matéria, apesar das críticas de Breton. "Ele é um escritor completo, como os melhores que edita", escreveu o italiano Claudio Magris, no número especial da "Quinzaine" dedicado ao centenário de seu fundador.
Longe das letras, o jornalista viveu a experiência da clandestinidade na Resistência e escapou por pouco de ser preso pela Gestapo. As convicções trotskistas não se esvaíram com o fim da guerra. Ele segue votando na esquerda e se entusiasmou com as recentes revoltas no mundo árabe: "Teocracia e democracia é uma rima impossível. O mais interessante nas revoluções tunisiana e egípcia é que tudo veio do povo, da base. Não foi algo dirigido nem mesmo pelos intelectuais".
Na língua de Maurice Nadeau, maturidade e idealismo dão um jeito de rimar.

O jornalista escapou por pouco de ser preso pela Gestapo. As convicções trotskistas não se esvaíram com o fim da guerra

Durante a manhã, lê os manuscritos que lhe enviam. À tarde, trabalha na "Quinzaine Littéraire", fundada por ele em 1966

Em 2006, ao ser questionado sobre inimigos, Nadeau disse: "Tenho um, Jean-Jacques Pauvert. Mas não sei mais por quê"


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