São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2011

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IMAGINAÇÃO
PROSA, POESIA E TRADUÇÃO

Pitys

JOÃO ANZANELLO CARRASCOZA

O DIA CAÍA devagarinho lá fora, veloz dentro de mim. O vento das montanhas soprava, frio, e a claridade varria em silêncio as sombras da noite. Aquela manhã seria como todas as outras manhãs de inverno. As ruas logo resplandeceriam com o verniz do sol, os pássaros se desgalhariam das araucárias e se semeariam pelo céu, e eu caminharia para mais uma jornada na serraria, o pó da mesmice se acumulando em meus olhos depois que ela partira.
A névoa se esvaneceria aos poucos, revelando o traçado coleante do casario, a ponte ao fim do povoado, tudo o que eu já vira tantas vezes e, no entanto, ao ver, de novo, sentiria como se fosse um ver distinto. E eu estaria grato pelo leve e contínuo movimento em meu peito -as mudas marés da respiração-, e a consciência de minha história, com sua escrita de lembranças, retornaria, me repregando ao corpo que era meu, como um botão numa camisa.
Aquela manhã seria igual a todas as outras manhãs de inverno, uma a mais a ser esquecida, não fosse pela força de vivê-la preso ao gancho do presente, de sentir que cada dia era como os diferentes tipos de madeira -a embuia, o jacarandá, o mogno, o carvalho-, um ideal para confeccionar móveis leves, outro para o trançado das cumeeiras, esse para forros resistentes, aquele para uma viga mestra.
Seria uma manhã como todas as outras manhãs de inverno, e ela me levaria a outras mais, que me poriam novamente diante da serra para cortar toras, eu só não sabia a que horas a ferida sangraria de novo.
Aquela manhã seria como todas as outras manhãs de inverno, se eu não chegasse tão tarde na serraria e, ao ligar a chave elétrica, não sentisse, acima do aroma das madeiras, o perfume dela, que ali entrara logo atrás de mim e, plantada sob os batentes da porta, me aguardava, sem pressa, até que me virasse. E eu me virei, abruptamente, eu era especialista em cortes rápidos, queria logo saber se era mesmo ela quem desafiava a minha lâmina afiada de monotonia. O cachecol que lhe dera meses antes dela descer a montanha serpenteava pelo seu pescoço, os cabelos que eu adorava -compridos- iam até sua cintura e chamavam em ondas as minhas mãos; seu rosto espelhava a superfície de um lago, aparentemente calmo, mas eu sabia que, no seu fundo, sentimentos violentos lutavam para aflorar diante de mim. Ela ventava nos meus olhos e eu não me movi, quieto entre as tábuas pesadas, tentando enquadrá-la à distância.
Mas a sua aparição inesperada me tocara como meus dedos tocavam as bordas das madeiras e as distinguiam pela sua aspereza. Desde que ela se fora, a minha seiva se congelara, e a descrença, que antes era uma fagulha, fervilhava agora como uma fogueira -ela poderia, se quisesse, ouvir as labaredas crepitando meu silêncio.
Permanecemos um instante nos mirando, cada um a buscar aquele outro que éramos tempos antes, resistindo em revelar nossas ramagens, mesmo porque elas haviam secado, só uma nova estação poderia nos curar de nós. Eu ia perguntar, Voltou?, ou ela, antecipando-se, diria, Voltei!, mas nada dissemos, estávamos enraizados no instante, os troncos impassíveis, os dois doendo devagar. Então, voltei-lhe as costas, peguei uma peça de pinheiro, apoiei-a na prensa e liguei a serra para cortá-la, retomando normalmente o trabalho do dia anterior. E, mesmo com o ruído da lâmina decepando o núcleo macio da madeira, eu podia captar seus passos no chão de terra batida -e sabia que ela vinha se aproximando, se aproximando.


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