São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2011

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DIÁRIO

Repórter ao mar

SOBRE O TEXTO
Diário da viagem que Roberto Kaz fez em agosto ao arquipélago de São Pedro e São Paulo, entre o Brasil e a África, onde a Marinha mantém uma estação científica, para fazer uma reportagem publicada pela revista Serafina em agosto de 2010 (leia em folha.com/ilustrissima)

ROBERTO KAZ

SEGUNDA, 9/8 ZARPAMOS
de Natal (RN). Nosso navio, o rebocador "Triunfo", leva 51 pessoas (49 delas do sexo masculino). A Marinha tem outros dois navios da mesma cepa: o "Tridente" e o "Tritão".
Nome de navio militar é como ninhada de cachorro: começa tudo com a mesma letra. Os navios- varredores abrem o abecedário: "Aratu", "Anhatolim", "Atalaia". A letra b pertence aos navios-patrulha: "Benevente", "Bocaina", "Babitonga". Submarino é com t: "Tupi", "Tamoio", "Tapajó".
Há também as ninhadas temáticas. Os navios de assistência hospitalar têm nomes de médicos: "Doutor Montenegro", "Oswaldo Cruz", "Carlos Chagas". Os de fragata versam sobre o estado livre: "Independência", "Constituição", "Defensora". Porta-aviões ganham nomes de Estados. O atual se chama "São Paulo". Veio substituir o "Minas Gerais" que, vendido à Índia em 2002, foi transformado em sucata e lâmina de barbear.
O passar da viagem se faz sentir por duas sensações. A primeira, visual: à medida que o navio se distancia do litoral, a coloração da água muda de verde para turquesa, depois de turquesa para azul-escuro.
A segunda sensação é física, e sem gradações: o balanço do mar. Começa assim que se cruza o píer -e não para.
Passei o dia dormindo, em função do remédio para enjoo. Como o chacoalhar impede qualquer tentativa de ler, escrever ou jogar baralho, a cama acaba sendo a melhor opção.

TERÇA-FEIRA
Tive três pesadelos. No primeiro, meu apartamento era abatido por um terremoto -que em vez de tremer, fazia o chão ondular. No segundo, eu estava em uma mesa de bar, e observava um copo sair e voltar à minha mão, como se flutuasse. No terceiro, o copo e a mesa ficavam parados, e quem oscilava no ar era eu, como se fosse um ioiô. Ou o corpo está avisando que alguma coisa lá fora está errada ou ele ainda não entendeu a mudança, e os sonhos, que deveriam ser normais, acabam incorporando a contragosto o balanço do mar. Acordamos às 6h, para o café da manhã: pão com margarina e melão. O comandante Barillo contou que o navio viaja a 7 nós, ou 12 km/h. Nesse passo, são quatro dias até o arquipélago de São Pedro e São Paulo. Tomei meu primeiro banho de chuveiro em alto-mar. A sensação é de que você é uma bola de pinball, batendo contra as paredes da cabine.

QUARTA-FEIRA
Acordei às 6h, com um anúncio pelo alto-falante: "'Triunfo', navio de alma forte e feliz, bom dia!". O oficial dizia que estávamos a 3 km de Fernando de Noronha. Ouviu-se a melodia de abertura do "Jornal Nacional", seguida de uma notícia: "Na estreia de Mano Menezes, a seleção brasileira venceu os EUA por 2 a 0, gols de Alexandre Pato e Neymar".
Pela manhã, o tenente Dinaldo ensinou os procedimentos de emergência. Há quatro balsas infláveis, todas com comida, água potável, bússola, kits de reparos e primeiros socorros. Em caso de naufrágio, nos dirão onde fica a terra mais próxima e se é "amiga", "inimiga" ou "neutra". O último grupo a deixar o navio será obrigado a destruir computadores e informações sigilosas.
Após 72 horas, o corpo parece estar mais acostumado ao balanço. Passo o dia vendo filmes na Praça d'Armas -a sala onde os oficiais se reúnem para comer. A oferta cinematográfica é farta. Começamos com "Senhor das Armas" (ruim), passamos por "Chico Xavier" (médio), terminamos com "Verdade Inquietante" (péssimo).

QUINTA-FEIRA
Almoçamos "Peixe à moda 'Triunfo'", receita do sargento Nivaldo, mestre-cuca de farta experiência na Marinha. Em 27 anos, comandou as cozinhas do porta-aviões "Minas Gerais", da fragata "União", do navio hidrográfico "Barão de Tefé" e do navio de desembarque de tropas "Rio de Janeiro". Em 2010, após um período cozinhando na base, pediu para ser integrado à equipe do "Triunfo": "Tenho mais três anos de Marinha. Quero terminar meu tempo navegando".
Na Marinha, refeição é chamada de "rancho"; onda é "vaga"; trabalho é "faina"; grupo é "faxina". Já a palavra "safo" pode ser usada em toda situação possível e imaginável. Se você entendeu uma ordem, responde: "Safo". Se cumpriu esta ordem, avisa ao superior: "Está safo". Se quer saber onde foi parar o jogo de dominó, pergunta: "Quem safou o dominó". Se está vendo um filme em que os atores deixam a desejar, comenta: "Não se safa um".
De noite, cruzamos a linha do Equador. O tenente Afonso contou que quer ser submarinista, "porque se houver uma guerra, é o que faz a diferença". Vi uma gaivota, uma estrela cadente e um avião.

SEXTA-FEIRA
São Pedro e São Paulo. O bote faz quatro viagens para nos levar à terra firme. Somos mais de 20 pessoas desembarcando. Trazemos galões de tinta para pintar a casa, panelas para preparar rabada, aparatos vários para consertar as antenas parabólicas.
À primeira vista, não há nada na ilha além de pássaro, dejeto de pássaro, telefone e internet. (Até 2006, havia um orelhão; por duas vezes a Embratel foi obrigada a enviar um técnico para consertar o leitor de créditos; na terceira, aposentou-o.)
Ainda que o entorno do arquipélago esteja coalhado de arraias, tartarugas marinhas, tubarões-baleia e peixes de toda ordem, a espécie local mais fascinante é a dos biólogos. Somos recebidos por três, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O primeiro, Fernando Erthal, está há duas semanas coletando conchas a quatro metros de profundidade, "para saber como se desgastam, se têm influência da corrente, das ondas, da temperatura". Diante do meu silêncio, ele se adianta: "E para que serve isso". Resposta: "Para comparar com conchas de outros locais."
Os outros dois pesquisadores juntaram 15 quilos de sedimento para o estudo "Zoogeografia dos Ostracodes Fósseis e Recentes do Arquipélago de São Pedro e São Paulo". E o que é um ostracode A bióloga Claudia Pinto Machado explica: "É um microcrustáceo de um milímetro, só visível se ampliado 130 vezes no microscópio". Com 15 anos de experiência no assunto, Claudia já encontrou 160 espécies do animal.
"Me apaixonei", derrete-se. "São tão pequenininhos. E ainda tem os radiolários, os foraminíferos e os nanofósseis, que também são lindos."

SÁBADO
Embora a estação científica tenha apenas quatro camas, fomos onze a dormir lá. Nosso sono foi embalado pelo gralhar incessante dos atobás, pássaros que predominam nas ilhas. Pela manhã, enquanto o capitão André checava o índice Bovespa no computador ("Aconteceu alguma coisa. Estava em 0,68% na semana passada. Agora está em 0,66%"), caminhei até o farol.
Instaurou-se, então, uma barreira intransponível: ou eu ficava na casa, de sala e quarto, com outros vinte militares, ou no farol, apreciando a vista, sob o arsenal incessante das aves. Casa, farol. Farol, casa. Em cinco minutos, você já conheceu todos os cantos de São Pedro e São Paulo.

DOMINGO
O navio começa a voltar. Serão quatro dias de viagem até Natal. Quatro dias em que assistirei a outros filmes e ouvirei outras músicas. Aprenderei que no quartel, picadinho é "carne de monstro" e figo verde em calda, "culhão de Hulk". Verei três tubarões e quatro cargueiros. Concordarei com o sargento Mello quando ele elogiar o sol se pondo no mar. Saberei, pelo noticiário da Marinha, que o Irã deverá inaugurar uma usina nuclear. Entenderei que quem viaja no mar viaja no tempo, porque fica sem internet, TV a cabo ou celular. Sentirei o navio oscilar 40º para cada lado. Ficarei com saudades de casa e do barbeador elétrico. Pensarei que, qual os mi litares, eu poderia ter bigodes.


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