São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2011

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ARQUIVO ABERTO

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Ainda o ciclo da pedra lascada

Urussanga, 1984

VALDEMIR MIOTELLO

Os fatos recentes acontecidos no Chile, no decorrer do resgate heroico dos 33 mineiros presos durante um tempo sem fim a mais de 700 metros de profundidade, me levaram de volta a 1984, à pequena cidade de Urussanga, em Santa Catarina. Uma tragédia semelhante se deu por lá, com desfecho absolutamente trágico para os 31 mineiros que, no dia 10 de setembro, foram vítimas de explosão no interior de uma mina de carvão.
Eu trabalhava como padre na cidade de Criciúma, e era vigário na paróquia Cidade Mineira, periferia onde moravam mineiros ativos e aposentados e pobres em geral. Por dever de ofício e compromisso de vida, os problemas enfrentados pelos trabalhadores de minas de carvão e pelos pobres em geral me diziam respeito.
A mineração ganhara força nessa região, tendo Criciúma como cidade central na década de 40, muitos municípios do sul de Santa Catarina viviam economicamente ao redor da exploração do carvão e dos mineiros. Vidas e mais vidas tinham sido destruídas nesse período, e a natureza pagava um alto preço com a poluição ampla atacando rios, solos, subsolos, pulmões e mentes.
A tensão por conta dos acidentes diários e mortes era insuportável. Doenças físicas -mutilações, pulmões destruídos- eram comuns, e doenças psíquicas eram normais.
Oito grandes donos de minas dominavam tudo e tinham fortuna imensa e imoral, construída sobre mortes, destruição e um bolsão de pobreza. Dia 10 de setembro. Segunda-feira. Logo cedo, na entrada do turno, às 5h10 da manhã, uma explosão vitimou os 31 mineiros que iniciavam os trabalhos, no painel seis. Os relatórios falavam de falta de energia no setor no final de semana, o que fez com que os exaustores, parados, não tirassem das galerias o gás metano, explosivo, que poderia ter sido acionado por um cigarro ou por um curto-circuito qualquer.
A notícia correu no sul do Estado na velocidade do medo, da perda, do horror.
Imediatamente me desloquei a Urussanga, distante 20 quilômetros de Criciúma. Na mina não se podia entrar. A falta de equipamentos adequados e de equipes treinadas, a concentração de pó e de gás carbônico impediram o resgate e a possibilidade de encontrar algum mineiro com vida.
Os próprios mineiros se encarregaram do resgate. O primeiro corpo foi achado na terça-feira, às 14h, 33 horas após a explosão. O último corpo foi retirado da galeria apenas na quinta-feira, 74 horas após a explosão.
Fiquei no hospital com a equipe que recebia, limpava, identificava os corpos (com a ajuda dos parentes) e os preparava para o enterro. Muitos chegaram mutilados, pois levavam explosivos para as frentes de trabalho.
Todos chegaram queimados; o calor produzido deve ter atingido facilmente os mil graus. Os corpos se desintegraram. O cheiro é inesquecível. Dor e mais dor. Enterros rápidos. Perplexidade, desespero e choro.
A relação era de vida, destino comum, morte e revolta.
O hospital ficou lotado de gente que acompanhou, sem dormir aqueles dias todos, aquela tragédia impensável para uma cidade pequena. Missas de hora em hora, falas esperançosas, palavras de luta e de organização, gestos fortes de união. Nessas horas tudo é posto à prova. E se renova e morre.
Em Urussanga, não há mais minas de carvão em atividade. Mas no sul do Estado de Santa Catarina, as mortes de mineiros continuam.


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