São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ÓPERA

Wagner na floresta

Tristão e Isolda hipnotizam Manaus

RESUMO
Apresentação de "Tristão e Isolda", de Richard Wagner, durante o Festival Amazonas de Ópera, em Manaus, dá mostra da qualidade do trabalho da direção e do elenco e renova a vocação do Teatro Amazonas. Palco histórico de montagens wagnerianas, vive momento especialmente fértil nos 15 anos do festival.


JORGE COLI

A ÓPERA NÃO JUSTAPÕE texto, teatro e música. Não é um híbrido. Rousseau foi ao cerne do gênero quando escreveu que não há nela palavras, notas e ações dramáticas aglutinadas, mas que o conjunto forma "um único e mesmo idioma". Sua natureza é distinta e singular. Esses três elementos, ao se fundirem, desaparecem para renascer naquilo que é uma língua inteiramente nova.
Essas reflexões um pouco abstrusas me vieram ao espírito depois de ouvir Luiz Fernando Malheiro dirigir "Tristão e Isolda", na semana passada, em Manaus.

DIVA Havia, no espetáculo, muitos motivos de entusiasmo e de comoção. O primeiro deles: Eliane Coelho, formidável diva, embora mostre-se como a menos diva de todas, sem caprichos ou nariz empinado, mas coloquial, receptiva, calorosa.
Ela é cantora residente da Ópera de Viena, cidade onde vive e onde marcou, definitivamente, o papel de "Salomé", na ópera de Richard Strauss.
Graças à montagem manauara, assumiu pela primeira vez a paixão incontrolável da grande amante que Wagner concebeu.
Transcendeu tudo o que se podia esperar. Seu timbre delicado, rico de um vibrato cristalino, ampliava-se, projetava-se, subjugava o ouvinte, porque vinha investido pela emoção, pela musicalidade, pela grandeza do drama.
Mesmo entre as maiores, raras são as cantoras que, como ela, atingem uma qualidade tão alta nesse papel terrível.
John Charles Pierce, americano, foi Tristão. Conhece perfeitamente o personagem porque o cantou inúmeras vezes, uma delas no Rio de Janeiro, há alguns anos, em montagem de Gerald Thomas que foi muito comentada na imprensa por razões nada artísticas (ao ser vaiado, o diretor abaixou as calças e mostrou o traseiro). Impôs-se com soberba autoridade.
Foi ainda magnífico ver e ouvir ao lado dele o jovem barítono brasiliense Leonardo Neiva. Ele desponta em sua carreira como um cantor consumado. Ofereceu ao escudeiro Kurvenal tanta vida e tanta qualidade vocal que a longa primeira parte do terceiro ato deixou de pertencer unicamente a Tristão para se tornar um verdadeiro dueto entre dois grandes cantores.
Como a paixão de Luiz Fernando Malheiro pela ópera leva-o a conhecer perfeitamente os cantores brasileiros, tarimbados ou iniciantes, o maestro soube descobrir, na juventude de Andreia Souza, uma Brangäne excelente, cuja beleza física correspondia à beleza da voz. Acrescente-se a montagem de André Heller-Lopes, discreta no primeiro ato, lírica no segundo, intensa no terceiro. Heller-Lopes submeteu os cantores a uma direção de ator que os conduziu a uma precisa convicção.


REGÊNCIA Nada disso, porém, teria alcançado tão profundamente a obra de Wagner sem a regência de Luiz Fernando Malheiro. Ele fez acontecer o ideal descrito por Rousseau. Quantos grandes maestros intuem assim música e drama? Quantos "Tristão e Isolda" se arrastam porque a direção de orquestra não percebe os infinitos episódios narrativos que brotam da música?
Malheiro extraiu a quintessência amorosa, desesperada, dessa obra máxima. Houve, ali em Manaus, uma representação, no sentido mais alto da palavra, o de figuração imaginária, cujo impulso se dirigia para o desejo amoroso.
"Tristão e Isolda" é radical, em relação mesmo às outras óperas criadas por Wagner. Cumpriu-se em Manaus a ideia, cara ao compositor, de que a arte é um conhecimento fora da razão, capaz de libertar o espectador de sua vontade, de esvaziar sua consciência para dar lugar à plenitude do gozo artístico; nesse êxtase, o indivíduo esquece-se de si próprio, transformando-se em energia estética.
A ação está na música, que cria uma teatralidade ao mesmo tempo erótica e espiritual. Por isso, tornou-se, no Ocidente, a encarnação sonora da sensibilidade amorosa. Bastam os primeiros compassos: com eles, surge o amor que será o fulcro da obra.

ORGASMO O público não piscava, tomado, hipnotizado, sem perder um momento sua concentração. Hipnose musical, que opera pelas sonoridades infiltradas nas emoções: Wagner reduz os episódios ao mínimo e expande ao máximo as sensações e os sentimentos. O segundo ato, que dura mais de uma hora, quase se limita a um dueto de amor, o que fez um crítico caracterizá-lo como "o mais longo orgasmo da história". O último ato, excetuando-se os minutos derradeiros em que Isolda vem fundir-se com Tristão para além da morte, é a expressão de uma espera.
O final de "Tristão" nos diz, porém, que a música, arte da temporalidade, termina numa reviravolta, anulando a própria temporalidade porque se fez êxtase.
Foi assim o sentimento que pairou no teatro Amazonas, naquelas horas em que o tempo ficou suspenso.
A Amazônia Filarmônica (que cordas esplêndidas! que prelúdio do primeiro ato! que prelúdio do terceiro ato!) respondeu magnificamente à concepção dramática e matizada da regência. Por uma vez, essa obra-prima mesclou, em equilíbrio, sem privilegiar nenhum lado, a materialidade sensual e a transcendência espiritual.

MANAUS Uma crítica como esta, no entanto, por mais entusiasta que seja, é insuficiente e, em certo sentido, injusta. Ela não dá conta de algo muito maior.
Esse histórico "Tristão e Isolda" amazonense não saiu do nada. Lembre-se de que essa ópera difícil e excepcional ocorreu em Manaus, e não no Rio, em São Paulo, em Milão, em Nova York ou em Londres.
Manaus, que já teve o ciclo completo do "Nibelungo" (quantos teatros no mundo podem se orgulhar desse feito?). Manaus, que leva a descobrir, com inteligência e conhecimento, óperas muito raras ("Yerma", "Maria Golovin", "Diálogo das Carmelitas"), ao lado dos títulos mais célebres e queridos do público. Manaus, que mantém, há 15 anos, seu Festival Amazonas de Ópera.
Ora, o festival é muito mais do que um "projeto", como se usa dizer. Tudo nele vive de fato. Todos os que dele participam, em ramificação que parece não terminar, alcançando montadores, serralheiros, fabricantes de cenário, costureiras, são tomados nas suas tarefas pelo fervor, pela energia, pela convicção de que estão fazendo alguma coisa de muito importante. O coro -cada vez melhor, que pode se dar ao luxo de destacar solistas em recitais exigentes- vibra de entusiasmo. Isso é sentido pelo público, contagiado.

CENTELHA VITAL Muito mais do que maus cantores, maus maestros e más orquestras, mais ainda do que a falta de dinheiro, nada mata tanto a ópera como a rotina, a gestão administrativa indiferente. Muitas vezes, nos teatros mais importantes e ricos do mundo, com as estrelas e astros mais bem pagos, o resultado é apenas tédio e bocejo. Falta, nesses casos, a centelha vital que está presente em Manaus há 15 anos.
Além das óperas, concertos e recitais que o Festival Amazonas de Ópera oferece; além da notável formação de artistas locais (músicos, cantores, artistas plásticos, bailarinos) e de ofícios diversos (cenógrafos, aderecistas, costureiros etc.), há ainda a formação de público. O mesmo elenco que apresentou neste ano a ópera "Suor Angelica", de Puccini, no teatro foi cantá-la em vários lugares, para públicos modestos. Pude assistir a uma dessas representações, num centro social destinado a idosos. A emoção do palco se unia à da plateia que descobria, ali, o que uma ópera pode ser.
Histórias assim são raras no Brasil. Cultura depende de estabilidade e boa continuidade. Aqui na nossa terra, em que as instituições culturais são muito frágeis, basta o capricho de um qualquer "dono do mundo" para acabar com tudo. O Festival Amazonas de Ópera acaba de completar 15 anos: excepcional longevidade. Grande torcida para que dure mais, muito mais.

PÓS-ESCRITO Resta um ponto, que vai como pós-escrito. Manaus é longe, e o Teatro Amazonas não é muito grande. "Tristão e Isolda" teve duas récitas apenas. Quantos puderam ir lá para assistir?
No mundo inteiro, por maiores que sejam as salas, o público presente aos espetáculos de ópera é forçosamente reduzido. Ora, graças às novas técnicas, fazem-se agora transmissões e gravações ao vivo de grande qualidade. Teatros os mais ilustres, na Europa e nos Estados Unidos, registram seus espetáculos, produzem e distribuem DVD para a venda.
É uma tristeza que a "Yerma", ou que a prestação de Eliane Coelho como Isolda não tenham sido fixadas de maneira digna em som e imagem. O próprio festival ganharia muito com isso, pois demonstraria assim, para espectadores muito mais numerosos, no Brasil e no mundo, suas qualidades notáveis.

Nota
Jorge Coli foi a Manaus a convite do Festival Amazonas de Ópera.


O maestro soube descobrir, na juventude de Andreia Souza, uma Brangäne excelente, cuja beleza física correspondia à da voz

Quantos "Tristão e Isolda" se arrastam porque a direção de orquestra não percebe os infinitos episódios narrativos que brotam da música?

Essa obra-prima mesclou, em equilíbrio, sem privilegiar nenhum lado, a materialidade sensual e a transcendência espiritual


Texto Anterior: O código de Shakespeare
Próximo Texto: Diário de madri: Alegria, alegria
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.