São Paulo, domingo, 29 de maio de 2011

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DIÁRIO DE MADRI
O MAPA DA CULTURA

Alegria, alegria

Lygia Pape e os "indignados"

SILAS MARTÍ

O SOL NAS BANCAS de revista. E a banca de revista na Puerta del Sol. No coração de Madri, onde acampam há duas semanas os "indignados", ninguém lê tanta notícia. São outros os textos: do enorme outdoor da L'Oréal, os indignados -como são conhecidos os manifestantes que há duas semanas ocupam as praças de toda a Espanha, protestando contra a corrupção e o desemprego avassalador no país- sacaram o começo para compor "real democracia".
Numa fachada próxima, estamparam um homem que lembra Hitler com as orelhas do Mickey Mouse. Não satisfeitos, subverteram a placa do metrô Sol para criar o ponto utópico de "plaza SOLución".
Sob o codinome 15-M, o movimento armou barracas ali, em 15 de maio (a uma semana dos sufrágios municipais e de comunidades autônomas), como forma de protesto contra o sistema eleitoral espanhol. Objetos cênicos da ocupação, cartazes listam currículos dos revolucionários: fluência em cinco línguas, duas graduações, especialização. Arrematam com um "score": o do tempo que levam de braços cruzados.
Debatem tudo. Passam largas horas em infinitas assembleias para discutir do salário mínimo aos planos urbanísticos, da especulação imobiliária a questões de ordem.
Na terça-feira, levaram um par de horas para deliberar sobre a conveniência de conceder uma entrevista a um canal de televisão, decidindo pelo não após acalorada reunião.
Mas são todos muito polidos. Anunciam pelo Twitter quando acabam as atividades ruidosas do dia, para não incomodar os vizinhos da praça. Também se distribuem em brigadas de alimentação, enfermaria, comunicação, organizam leituras dramáticas, traduzem clássicos para a linguagem infantil e oferecem camisinhas aos que endureceram sem perder a ternura.

EM GRANDES BEIJOS DE AMOR
Se nada surgir do esforço, pelo menos existe um novo amor hippie. Flertes alvoroçam as tendas montadas em Sol. Homens e mulheres, mulheres e mulheres e homens e homens.
Não é verão, mas as temperaturas não caem abaixo dos 30 graus desde o começo da semana passada, e ventiladores gigantes borrifam com vapor d'água os mais afoitos. Não muito longe dali, um bar saúda o sol que não se põe nunca tocando "Samba de Verão". Mas não parece ser essa a trilha da revolução.
A melodia ditada pelo calor seco de Madri está mais para "Alegria, Alegria". Em dentes, pernas, bandeiras, mas sem bomba nem Brigitte Bardot. O aquecimento global estorrica esse Maio de 1968 revisitado pelo 15-M. O glamour já não é o mesmo -e também mudou um tanto o padrão de beleza. A magreza dos vegetarianos apaixonados do 15-M engoliu a volúpia da atriz francesa.
Mas nada impede que haja beijos cinematográficos -mesmo que, às vezes, só para as câmeras de televisão- nos vagões do metrô, nem gritos dos amantes noite adentro, nos terraços de La Latina, a quadras da Puerta del Sol.
Quem não está amando nada disso são os vendedores da praça. Dizem que as vendas caíram até 80% desde que se instaurou o furdunço na Puerta del Sol.
Depois de apelos dos comerciantes, os "indignados" concordaram em destapar as bancas de revista e pequenas lojas, devolvendo a luz do sol às vitrines cheias de cartazes.
Mas não arredaram pé quanto às multinacionais e grandes lojas de departamento. El Corte Inglés, maior loja da praça, está irreconhecível em sua roupagem política. A sorveteria Ben & Jerry's, mesmo pequena, continua abarrotada de manifestos por ser uma rede estrangeira.

POR ENTRE FOTOS E NOMES
Outra estrangeira, Lygia Pape, é mais benquista no front revolucionário. Na praça em frente ao Reina Sofía, um grupo ensaiava sua performance "Divisor" na abertura da retrospectiva dedicada à brasileira no museu espanhol. É o pano branco que cobre a multidão, deixando só as cabeças à mostra, num mar flutuante de corpos desmembrados pela plástica da ação.
Pape fez desaguar seu oceano humano pela primeira vez em 1968, ano da entrada em vigor do AI-5, diante do Museu de Arte Moderna do Rio. Agora, espanhóis convocados para a ação estavam a serviço do marketing habitual das grandes mostras no circuito global. Ignoravam a história pregressa da obra -embora uma ala até sugerisse contrabandear o pano para "causar" na Puerta del Sol. Aflita com a documentação, a filha da artista, Paula Pape, orientava a massa em "portunhol" para poder filmar tudo a tempo, cancelando a itinerância do manto.


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